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Foto do escritorHelena Magalhães

Uma história sobre um dia de merda


O meu telefone toca às dez da manhã. Eu desligo o alarme e levanto-me da cama num ápice porque, bem, são dez da manhã e poder acordar a esta hora todos os dias é fabuloso. Abro a janela, deixo os cortinados voar lá para fora, levo os gatos para a sala e vou tomar o pequeno-almoço. Faço um zapping porque, por mais que digam que isto não é saudável e blá blá conversas de fanáticos, gosto de comer em frente à televisão. E bem, são dez e meia da manhã, vou tomar banho, visto qualquer coisa porque tenho o dia livre qb – ou seja, não tenho nada marcado de trabalho e vou passar grande parte do dia a fazer o que mais gosto: escrever – e saio de casa para me encontrar com uma amiga na praia. Damos uma caminhada, falamos sobre tudo e sobre nada. Falamos do Óscar do Casey Affleck. Falamos sobre a música da Romana que uma nova miúda cantora colocou no Facebook. E é fantástica. Falamos sobre trivialidades de quem fala todos os dias e, na verdade, não tem nada de especial para falar. Porque basta a companhia e um passeio ali à beira mar. Despedimo-nos e eu volto para casa porque, entretanto, já é hora de almoço. Como a correr e meto-me no carro para ir ver uma casa que consegui ser a segunda possível compradora a ver. Chego lá e o agente imobiliário está atrasado. Fico um momento à porta naquela situação constrangedora em que o casal, que vai ver antes de mim, está ali com uns sorrisos embaraçados porque ninguém sabe muito bem o que dizer. O agente chega, pede desculpa pelo atraso e eles sobem enquanto eu fico cá em baixo, sentada no degrau à espera. Passam quinze ou vinte minutos quando eles descem, apertam mãos e chega a minha vez. Mas o casal já fez uma reserva porque quer mesmo ficar com a casa. Fixe. Vou embora com a promessa de que, se eles desistirem, me contactam.

São três da tarde quando começo de facto a fazer qualquer coisa. Sento-me no sofá. Pego no telemóvel (que não tem notificações de nenhuma rede social porque as desactivei há uns meses) e, pela primeira vez no dia, vejo tudo o que se está a passar no mundo. Vejo fotografias do carnaval. Vejo as máscaras dos filhos e dos bebés. Vejo barrigas porque, pelos vistos, este é o ano em que toda a gente está gravida. Vejo muitos copos. Vejo bebedeiras de quem aproveitou o feriado. Vejo mil e uma opiniões sobre o Óscar do outro. Começo a responder a umas quantas e, quando dou por mim, estou transformada numa daquelas pessoas que, pelo computador, solta o seu monstro comentador e opinador sem escrúpulos. Decido afastar-me do Facebook porque vejo toda a gente a viver nesta telenovela estúpida que são as redes sociais onde todos se cruzam na primeira fila a dizer olás transformados em likes em fotografias e a ter conversas profundas num chat azul.

Começo a escrever qualquer coisa. Mas estou frustrada com a situação da casa e acabo por me distrair e decido pegar naquela aplicação estúpida dos seguidores no Instagram para ver quem deixou de me seguir. É aquela dose mensal de uma granada emocional. Normalmente, são outras bloggers ou assim que seguem e deixam de seguir – não sei bem porquê. Mas, pára tudo. Uma amiga deixou de me seguir. Ligo a outra amiga para contar. Vê lá quem é que deixou de me seguir, achas normal? Que atitude mais estranha. Mas calma, será que ela ainda é mesmo nossa amiga?, questiona-me ela ao telefone. Ela nem sequer fala connosco há meses, diz-me. É verdade, se calhar já não somos e eu é que não me apercebi. Questiono-me quando é que foi a última vez que falámos.

Lembrei-me. Foi em Setembro do ano passado quando, depois de não ter ido ao jantar de aniversário dela porque estava num babyshower de uma grávida prestes a parir, ela me enviou uma SMS três semanas depois a pedir se eu podia pagar o dinheiro do jantar a que não fui. Mas o babyshower acabou às dez da noite. Eu podia lá ter ido ter, é verdade. Então porque não fui?, questionam-se vocês. Porque a conversa que tivemos nessa noite foi mais ou menos assim:

– O babyshower vai ficar para jantar porque são oito horas e ainda não abrimos os presentes. Agora chegou a mãe e a irmã, então tenho de ficar. Zero respostas. – Talvez consiga ir aí ter no fim do jantar para partir o bolo e cantar os parabéns. Até que horas posso ir? Yey. Resposta dela. – Se não vens, quem é que vai pagar o teu jantar? – Se o problema não é a minha presença mas sim o dinheiro, sem problema, eu pago o jantar que não comi. Zero respostas. E zero vontade em lá ir ter. Fui para casa dormir.

Pensei que ela tinha percebido a indirecta. Nem à pessoa que menos gosto, eu iria pedir dinheiro. Se não veio, não veio. Assunto encerrado. Pensei que o tema tinha ficado esquecido mas, três semanas depois, sem me perguntar se estou bem, se estou viva, se estou morta, envia-me uma SMS a pedir o dinheiro e a dar-me o NIB dela. Foi mesmo assim. Perguntei a outras duas amigas (que ela conheceu através de mim e também convidou para o jantar) se ela lhes tinha ido pedir o dinheiro, dado que elas também não tinham ido. E elas disseram que não. Então só me pediu a mim? À amiga que lhe apresentou toda as outras que ela conheceu e a quem não pediu nada? A minha resposta a esta SMS foi uma foto da transferência bancária. Quão estranhas são as pessoas?

Esperei por um pedido de desculpa. Por uma nota qualquer. Uma mensagem a dizer que tinha sido parva. Porque estava bêbada, por exemplo. Mas nunca chegou. Até hoje, em que deixou de me seguir numa estúpida de uma rede social. As pessoas são uma merda. Todos nós. Eu também o sou – por vezes, quando estou de mau humor. Ou para algumas pessoas que não tenham empatia comigo. Ou para quem ache as minhas opiniões demasiado vincadas. Mas a merda é que eu gosto de debater assuntos e excedo-me demasiado quando o estou a fazer.

Vivemos numa sociedade em que grande parte das pessoas que conhecemos são uma treta. E isto não é um comentário negativo. Somos pessoas egoístas, egocêntricas e estamos focados na nossa vidinha. Queremos ser porreiros, queremos que todos gostem de nós, queremos ser o amigo fixe que está lá para tudo. Mas, vejam bem, é impossível ser-se isso. Não podemos estar lá para toda a gente nem gostar de toda a gente. No final do dia, vamos acabar por não estar lá para ninguém. Porque temos trabalho. Porque temos problemas. Porque não temos tempo. Porque ficámos sem bateria. Porque não dá jeito.

E eu também sou uma merda. Porque levo estas coisas todas a peito. Sou uma merda porque tenho expectativas elevadas para toda a gente. Sou uma merda porque vejo sempre o lado bom de todas as pessoas. Tive um namorado que me dizia que este era o meu maior defeito – esperar sempre o melhor dos outros. Porque depois levava com um grande balde de desilusão.

Todos nós – seres humanos – somos uma merda em sociedade. Preocupamo-nos pouco com as outras pessoas, passamos demasiado tempo a olhar para o nosso umbigo, queremos falar mais de nós e ouvir menos dos outros. Apitamos no trânsito, fazemos asneiras com o dedo ao carro de trás, estacionamos no meio de dois lugares porque não nos apetece fazer manobras. Lixamos o colega do lado para ganhar pontos com o patrão, desdenhamos de quem pode ser nosso concorrente porque não conseguimos fazer melhor, alimentamos mentiras de alguém só porque não vamos com a cara dela. Somos todos uma grande merda. Mesmo que, no dia-a-dia, não nos apercebamos disso porque ser merdoso acabou por fazer parte do nosso ser.

Então, no meio de tanta merda, o que é que podemos fazer? Não deixar que toda esta merda se torne parte do nosso estado natural enquanto seres humanos. E isto é um desafio diário com que temos que nos comprometer todas as manhãs. Por cada merda que conseguirmos evitar no convívio com as outras pessoas, é menos um bocado de coração que partimos.

Deixei a escrita de lado porque o dia, por hoje, já estava arruinado. E a inspiração para escrever não pode vir de sentimentos de merda a corroer o nosso espírito. Meti a música aos altos berros e dancei pelo quarto com os gatos atrás de mim. Gosto de os agarrar ao colo e dançar com eles pela casa. Talvez eles não gostem tanto assim mas eu continuei a fazê-lo. Até que me cansei e deitei-me no sofá a ver Santa Clarita Diet no Netflix. A série é absolutamente estúpida. E eu estou plenamente viciada. Fiz várias vezes pausa na série para falar ao telefone com duas amigas que, por estarem a sair do trabalho, me ligaram para a nossa dose diária de conversa pós-laboral. Queria ver mais episódios mas, bem, só há uma temporada. É melhor começar a poupá-la para me durar mais do que três dias.

Pensei que hoje me devia deitar cedo. Mas acabei por ir ao cinema. Odiei o Vedações – embora tenha gostado da prestação tanto da Viola como do Denzel. Só não entendi o propósito do filme nem a mensagem final. São uma e quarenta da manhã. A noite deixa-me sempre mais sentimental. Fiz um printscreen da aplicação e enviei para ela a perguntar o que se passava. Passado um bocado vi que ela tinha lido e não respondeu.

Encolhi os ombros. Porque, de facto, não há mais nada que possa fazer.

Decidi apagar a aplicação estúpida dos seguidores. E ler um bocado para acalmar a mente.

E fui dormir.

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