Desculpem-me o tudo o que vou escrever. Aliás, peço desculpa, desde já, por todas as susceptibilidades que vou ferir. Mas eu preciso de o dizer: que merda de geração é esta que se está a criar? Uma geração que não quer trabalhar, que luta com unhas dentes por uma fama virtual nem que, para isso, se tenha de despir ao espelho do quarto e que tem como objetivo de vida, não ser médicos, não ser enfermeiros, não ser jornalistas, não ser contabilistas, não ser advogados, não ser qualquer outra coisa de útil à sociedade, mas sim: blogger, youtubber, instagramer.
Eis a nova profissão dos tempos modernos: ser-se blogger. Em casa. No quarto. No telemóvel.
E de quem é a culpa? De todos nós.
Eu queria ser top model, bailarina, cantora e famosa
Quando eu tinha 15 anos, tinha muitos sonhos. Queria ser top model. Queria ser bailarina. Queria ser cantora. Amava tirar fotografias (tenho caixas e caixas de fotografias de todos os anos da minha vida). Amava dançar nas discotecas. Amava fingir que ia ser famosa. Cantava na escola. Mas na verdade, e quando falava a sério, eu não sabia o que queria fazer da vida mas queria que fosse qualquer coisa relacionada com o trabalho com outras mulheres. Queria fazer a diferença na vida delas. E podia continuar a dançar, a tirar fotografias, a cantar e a fingir que era top model com as roupas bizarras que levava para a escola para ser diferente de toda a gente (ainda não havia os blogues, porque eu teria sido a rainha da cocada preta) mas isso tudo não deixavam de ser hobbies.
Foi por isso que estudei Política Social e, mais tarde, Criminologia. Isso concretizou-se. Trabalhei muito. Conheci demasiado bem a realidade social portuguesa ao ponto de a odiar. E mesmo quando decidi pegar no meu hobbie a sério – escrever – e torná-lo um trabalho – jornalismo – sempre soube que esse era o meu caminho para fazer aquilo que, no fundo, sempre quis fazer: marcar a diferença na vida de alguém. E esse é o propósito de qualquer profissão: médico, enfermeiro, advogado, psicólogo, professor… ser útil a alguém.
Eu não cresci na época em que miúdas de 16 anos são estrelas porno do Instagram
Mas, bem, eu não cresci com redes sociais. Eu cresci na época em que os telemóveis tinham uma antena, um ecrã do tamanho de uma unha e só serviam para telefonar, dar toques às minhas paixonetas e mandar SMS rápidas. Eu cresci na época em que famosos eram aqueles que apareciam na televisão e ouvia na rádio porque essas eram as suas profissões. Eu cresci na época em que tirar fotografias em biquini implicava palhaçadas na areia e línguas de fora para a câmara porque, hellooo?, eram férias de verão. Eu cresci na época em que quando o Ivo lá da escola me viu na praia e, quando as aulas começaram, disse a toda a gente que era uma boazona, eu fiquei mais corada que um tomate. Eu cresci na época em que ser famosa era ter a escola inteira a gozar com as minhas calças à boca de sino (quando usar calças à boca de sino era um faux pas da moda, coisa do século passado).
Eu não cresci na época em que, de repente, toda a gente quer ser virtualmente famoso. Sem fazer nada. Apenas por estar em casa a fotografar-se, a filmar-se e a expor-se pela internet fora. Eu não cresci na época em que raparigas de 16 anos são estrelas porno das redes sociais. Eu não cresci na época em que raparigas deixam de estudar e de trabalhar para se dedicarem àquilo que realmente gostam de fazer: tirar fotografias à sua roupa e à sua maquilhagem.
E de quem é a culpa? De todos nós.
A culpa é minha, é vossa e das marcas que tornaram raparigas normais em blogaholics
É minha porque mostro aqui todo o lado bom de ter um blogue. Mas o que, se calhar, muita gente não vê é que eu trabalho a sério. Horas e horas. Eu escrevo, eu sou jornalista e, porra, trabalhei durante 2 meses no verão para montar um dos maiores sonhos que tinha. E que não, não tem a ver com roupas, maquilhagem nem pinturas de cabelo. Tiro fotografias para ilustrar estes posts, é verdade, porque continuo a adorar tirar fotografias (exactamente como quando tinha 15 anos) mas faço-o no meu tempo livre (tal como o fazia na altura, fora das aulas). Não tenho qualquer objetivo de parar de escrever para ser blogger de lifestyle. Porque o que é que é isso afinal de contas? Nada.
É vossa porque alimentam esta obsessão. Eu gosto de chamá-la blogaholic. Todas as vezes em que veem o instagram de alguém a passear, a maquilhar-se, a tirar fotografias nos provadores das lojas ou quase nua ao espelho do quarto e comentam coisas fofinhas como “que linda, olha para essa barriga“, “adoro esse batom, qual é a marca?” ou “amooooo essas botas, compra” estão a alimentar ainda mais esta obsessão. A obsessão por ter mais likes, mais comentários, mais aprovação. A pessoa começa a tornar-se cada vez mais blogaholic. Compra seguidores, compra likes, tem redes sociais com milhares de seguidores falsos, contacta todas as marcas possíveis e imaginárias, vai aos eventos todos e quer aparecer mais e mais e mais. Quer estar em todo o lado. Quer receber goodie bags de todas as marcas. E acha-se no direito de o fazer. Trabalhar e estudar é uma perda de tempo porque, afinal, tira-lhe o tempo necessário para fazer monólogos para a câmara em casa ou tirar 50 fotografias, escolher uma, colocar 10 filtros, publicar, usar a aplicação de likes para ganhar moedas, usar as moedas para colocar likes nas suas fotos. E, bem, já passaram duas horas. Está na hora de tirar mais uma fotografia.
É das empresas e das marcas que usam estas blogaholics para divulgar a troco de quase nada os seus produtos. No outro dia, falei com uma marca de ganga da minha adolescência que me tinha contactado e queria contar, com ela, uma história sobre a forma como a moda moldou a minha personalidade enquanto crescia (eu era, eventualmente, uma das miúdas mais bizarras da escola). Não ia colocar fotografias parvas nas redes sociais nem fazer um post chapa cinco igual ao press-release deles. Fiz uma proposta concreta com pés e cabeça. Não quiseram. Porquê? Porque, afinal, já tinham fechado as parcerias todas. Passado uma semana vejo, no Instagram, um blogaholic que conheço (e que deixou de trabalhar para ser blogger) com essa marca. Tem 80 mil seguidores (uau!), fotografias com 700 likes. Mas colocou um video e apareceram lá 400 visualizações. Onde estão os restantes 79 mil e 600 seguidores? De quem é a culpa, então? É das marcas, que alimentam esta obsessão. E que fecham os olhos porque é mais fácil apresentar ao chefe que trabalharam com um blogaholic com 80 mil seguidores, mesmo que 79 mil sejam falsos.
O que é que é preciso mudar para esta geração?
O que é que é preciso mudar para esta geração que se está a criar? Toda esta falsa noção de fama virtual. Até Kim Kardashian, rainha do não fazer nada de útil, o percebeu da pior maneira: ao ser assaltada à mão armada no hotel. A forma negativa como nos expomos tem sempre consequências, mais ou menos graves. Para ela pode ter sido ser quase morta, para nós pode ser perdermos um emprego a sério porque o empregador nos encontrou nas redes sociais e ficou, bem, com vergonha alheia.
Ter um blogue é fantástico, aconselho a toda a gente. Mas um blogue tem de vir com um propósito claro, um gosto inato, uma necessidade da alma. No meu caso, é para chegar a mais leitores. Por forma a que, um dia, possa escrever (de forma séria. Tipo… livros?) e ter uma rede de leitores. Eu quero ser ativista, quero continuar a trabalhar com mulheres, quero continuar a ser um meio de empowerment feminino, quer seja a escrever sobre relações, sobre a arma de poder que é a maquilhagem, ou a estupidez que é despirem-se em fotografias nas redes sociais porque, quanto mais sexualizada a vossa imagem, mais… likes?
Ter um blogue pode ser um meio fantástico para atingir um fim profissional ainda maior. Mas tem de haver um fim que seja mais do que aparecer, ter likes e passar o dia a tirar fotografias.
E esta mudança depende de todos nós: das ideias que passamos aos nossos filhos, amigos, conhecidos. Da forma como lidamos com as redes sociais. Do tipo de mensagens virtuais que vemos, comentamos, aplaudimos e fomentamos ainda mais.
Tirar fotografias é maravilhoso. Fazer vídeos também. Guardar memórias, partilhar ideias, comunicar com as outras pessoas. As redes sociais aproximam-nos mais uns dos outros. Fazem-nos ver o mundo com outros olhos. Mas não se podem tornar uma obsessão nem afetar toda a nossa vida real.
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