No outro dia, um amigo que debate comigo estes temas das relações, mostrou-me esta crónica do Diário de Notícias sobre as pessoas que vamos guardando dentro das gavetas. O autor dizia, em 2013, que catalogamos as pessoas numa espécie de geografia emocional da memória onde elas se encaixam em certos períodos da nossa vida. O que, até certo ponto, é verdade.
O Ford Fiesta do meu namorado
Sempre que olho para um Ford Fiesta dos anos 90, lembro-me do carro de um namorado com quem estive um bom par de anos. Lembro-me de termos 20 e tal anos, não termos dinheiro nem para jantar fora e andarmos no velhinho Fiesta cinzento felizes da vida. Lembro-me de aprender a conduzir naquele carro. Lembro-me de bater com ele enquanto o meu namorado tapava os olhos arrependido de me estar a ensinar. Lembro-me de lhe dizer “olha o passeio” e ele me responder “mas quem é que sabe conduzir aqui?” seguido de um choque tão agressivo que lhe entortou a roda. Lembro-me de me perder a rir com ele amuado porque, afinal, eu tinha razão e ele tinha lixado o carro porque não me deu ouvidos.
Toda aquela fase da minha vida foi bonita. Crescemos juntos e aprendemos a ser quem somos a dois. Saímos da faculdade juntos, iniciámos os primeiros empregos juntos e ultrapassámos todos estes dramas de início de vida juntos. E essa fase foi fechada na gaveta e, lá dentro, está a magia daquilo que vivemos. Sempre que me lembro de mim naquele primeiro emprego horroroso, lembro-me dele a ir buscar-me à noite porque eu estava demasiado cansada e demasiado deprimida para fazer uma viagem de uma hora em transportes até chegar a casa.
Foi uma relação bonita? Foi. Gostaria de voltar a ela? Não. Porque nada ia ser da forma como foi naquela altura. É por isso que todas estas pessoas devem ficar bem guardadas nas gavetas. Podemos abri-las sempre que quisermos. Podemos dar-nos ao luxo de pensarmos nessas pessoas. De fantasiarmos, até. Mas vamos ter sempre a tendência de querer voltar para o lugar onde, um dia, fomos felizes. E é aí que estragamos tudo.
Os lugares onde fomos felizes
De certeza que, agora em que me estão a ler, se estão a lembrar da pessoa X com quem tinham uma química tão grande mas nunca se proporcionou nada; da pessoa Y com quem deram uns beijos naquela festa e, depois, nunca mais voltaram a ver; da pessoa Z por quem tinham uma paixão platónica e de tempos a tempos procuram no Facebook para saber o que é que anda a fazer na vida.
É bom abrir estas gavetas? É. São pequenos mapas da nossa história que nos tornam tudo aquilo que somos. Podemos olhar para as gavetas? Pensar nelas? Desejá-las? Sim. Faz-nos bem fantasiar. Mas apenas isto.
Muitas destas pessoas são especiais porque fizeram parte de um período da nossa vida. Hoje em dia, provavelmente, não lhes iríamos atribuir tantas qualidades quantas atribuímos naquela altura.
Quando andava na escola, tive uma paixão dos diabos por um surfista de mota azul que lá andava. Era o ser mais maravilhoso à face da terra. E eu, que sempre fui uma pessoa emocionalmente intensa, escrevia-lhe cartas, enfiava-lhe papéis no cacifo, deixava-lhe longas e bonitas declarações de amor na caixa do correio. Sabia tudo dele: o que fazia, onde ia, o que gostava, com quem andava. Arrastava as minhas amigas para os sítios onde sabia que ele ia estar. Íamos para o café da praia onde ele trabalhava. E toda a minha vida girava à volta dele. Não havia eu sem haver ele, se é que me entendem. E ali aquela fase 13, 14, 15 anos, foi marcada pela nossa história de amor (inexistente). Porque ele era mais velho, tratava-me com o maior respeito mas brincava com toda esta situação. Os anos passaram, eu cresci, tive namorados, saí da escola, fui para a faculdade e, anos mais tarde, voltámos a encontrar-nos e, desta vez, ele saiu da gaveta e entrou na minha vida.
A magia é mágica exactamente porque está no passado
E o que é que aconteceu? Não havia magia. Tudo aquilo que ele significava, fazia parte do meu eu de 15 anos e não do meu eu de 20 e tal. Ele era mágico aos meus olhos de adolescente. E quando conheci a pessoa real que ele era e não a pessoa imaginária que havia criado, percebi que não tínhamos nada a ver um com o outro.
Hoje, olho para ele e tenho um carinho enorme por a pessoa que é. Sempre que falamos, dou por mim a rir. Vou sempre gostar dele. É das gavetas que mais me faz sorrir por me fazer lembrar uma altura da minha vida em que fui tão feliz.
E é para isto que as gavetas servem. Não para as tentarmos recuperar mas sim para nos fazerem lembrar da nossa história, do nosso passado. Podemos continuar a catalogar as pessoas da nossa vida, a guardá-las, a lembrá-las, a fantasiá-las. Mas não estraguem essas gavetas ao tentar trazer para o tempo real aquilo que vive na vossa memória.
Fotografia tirada por Catarina Sousa | Joan of July
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