Num mundo não tão distante assim dos nossos dias, as mulheres foram proibidas de falar, de trabalhar, de aprender, de estudar e de ser independentes. Num mundo não tão distante assim dos nossos dias, Vox de Christina Dalcher pega no legado de Margaret Atwood escrito em 1985 e recria-o numa distopia feminina do novo milénio tão crua, tão real, tão actual, tão quase-possível-de-acontecer que nos revolve as entranhas ao ler. Talvez na era antes de Trump, antes do #metoo, antes do escândalo Bill Cosby, antes das denúncias a Brett Kavanaugh, antes das denúncias de assédio no desporto e muitas outras vozes que foram finalmente ouvidas nos últimos anos, este livro tivesse sido descartado como mais uma história pró-mulheres demasiado fantasiosa para ser real no nosso mundo oh-tão-justo.
Mas estamos em 2019. E se achamos que as mulheres estão finalmente a levantar a voz (na verdade, já o fazemos há muitos anos mas, amén redes sociais, agora temos mais formas de o fazer), isso também significa que há cada vez mais vontade em nos silenciarem.
Tive a oportunidade de me sentar com a Christina Dalcher e falámos sobre o Vox, sobre o feminismo, as redes sociais, a importância da literatura na juventude, sobre os movimentos #metoo e o impacto que uma distopia como Vox pode ter nesta geração.
Qual a importância em trazer distopias para a literatura?
Além do entretenimento – e as pessoas precisam de se entreter, certo? -, penso que o que torna as distopias um género bastante interessante é obviamente a componente política nestes livros que leva os leitores a questionar a sua participação política e pensar no seu mundo enquanto uma realidade global. Queremos ser activos ou passivos? E no Vox temos a Drª Jean McClellan que é uma mulher inteligente, uma cientista que usa o seu conhecimento para reparar a voz das outras pessoas, mas vemo-la a escolher virar as costas e aceitar o seu silêncio imposto. Então acredito que as distopias e o Vox são o tipo de livros que fazem as pessoas compreender como o mundo pode mudar tão rapidamente. A História ensinou-nos isso e, enfim, já está a acontecer agora. É importante prestarmos atenção e sermos activos. Não significa que temos de ir a todas as manifestações e marchas. Mas sairmos de casa para votar já seria bom.
Usarmos a nossa voz, dado que temos uma, já seria bom. Porquê o tópico da voz em Vox?
Bem, eu costumo dizer que, enquanto linguistas, nós [os profissionais desta área] fazemos um terrível marketing pessoal para o público. Gostamos de ficar nas torres altas do mundo académico, fazemos o nosso trabalho teórico e escrevemos os nossos artigos e isso é bom. Muitas pessoas os lêem – infelizmente são apenas os outros linguistas. O público em geral não percebe como a linguagem é tão cool. E importante. Não apenas para falar mas também para processar informação e nos tornar aquilo que somos. Enquanto humanos temos de aprender linguagem num certo período de tempo. E se não aprendermos nessa fase, não o vamos fazer nunca. E isto é de loucos, não? Quando pensamos que a linguagem é uma das principais características que nos separa do resto dos animais. Mas aprendemo-la tão facilmente e sem esforço enquanto crianças que praticamente não lhe damos qualquer valor. Sabemos falar. É fácil. Então é algo que tomamos por garantido. E acho que queria trazer um pouco deste tema da linguística para o Vox.
Mas enquanto linguista, porquê escrever um livro sobre o silêncio das mulheres?
Esta é uma longa história [mas temos tempo, não temos?]. Sempre tive esta ideia do silêncio. Quando era miúda li um pequeno conto sobre as pessoas de uma aldeia que só podiam dizer certas palavras. Não me lembro ao certo mas este tema das palavras ficou na minha cabeça e sempre quis brincar com esta ideia de limitar o discurso. E enquanto linguista, claro, também queria brincar com a ideia da perda da linguagem e do direito de falar. Sempre me questionei o que iria acontecer ao mundo se isto acontecesse. Mas percebi que não queria escrever um artigo académico sobre isto. Queria mesmo escrever uma história e que envolvesse o sistema político que anda no mundo nos últimos anos: não com as mulheres a serem silenciadas mas com as mulheres a gritarem tão alto [movimentos #metoo]. Porque há muitas pessoas a ver televisão e a pensar: oh my God, desejava que elas se calassem de uma vez por todas. Ao tirar a voz e a linguagem a alguém, estamos a tirar grande parte da sua humanidade. Estudei o passado e os grandes movimentos da era vitoriana, a cultura da domesticidade onde tudo era separado por género, as leis fundamentalistas de género onde os homens vivem fora e as mulheres ficam sempre dentro de casa… Tudo isto juntou-se na minha cabeça para criar este livro. Mas não é apenas um livro sobre mulheres. É sobre como todos precisamos de falar por nós próprios. Eu podia ter escolhido outras vítimas. Podia ter silenciado todos os republicanos ou todos os democratas ou todos os negros ou todos os homens. E é este o foco, right? Pegar num grupo e reduzi-lo ao silêncio. Eu queria criar a personagem do Reverendo Carl que quer voltar a colocar o mundo numa ideologia fanática de domesticidade e, claro, teria de silenciar as mulheres.
Como o livro da Atwood. Há sempre comparações, não há?
Claro. Hoje em dia, se uma pessoa escreve uma distopia e tem uma mulher nela… bem, meio mundo vai comparar com a História de Uma Serva. E não vejo mal nisso. Acho que o Vox pode ser comparado no início mas depois o livro ganha o seu cunho próprio.
E ganha o cunho do totalitarismo que é assustador. Foi buscar inspirações ao #metoo?
[risos] Nem por isso. Acho que toda a gente pensa que escolhi silenciar as mulheres devido a estes movimentos que andam a correr o mundo. Mas a chave está mesmo aí na pergunta. Eu estava muito mais interessada numa visão global de autoritarismo e demasiado controlo governamental. E também os medos que surgem quando se mistura religião com política que é um dos grandes perigos do mundo de hoje. Acho que o facto de as mulheres em Vox serem as vítimas é apenas um reflexo: se queria falar de religião fundamentalista e radical, então teria de focar a opressão das mulheres.
Gosto de incentivar os jovens a ler mais. Vox pode ser transversal a todos os leitores?
Absolutamente! E esta é a parte fascinante. O livro saiu aqui em Portugal há apenas umas semanas e ainda é tudo muito novo e não sabemos quem vai ser a audiência portuguesa. Mas Vox já saiu nos EUA, Itália, Alemanha e Reino Unido no verão passado. Então já tive oportunidade de lidar com as reações do público e posso dizer que já tive leitores de 10 anos e leitores de 90 anos. E acho que todos vão tirar conclusões diferentes desta leitura. Talvez as pessoas mais novas que estão a ver uma certa série na televisão [Handmaid’s Tale], vão ler o Vox através dessa lente e dessas comparações. Mas certamente que as pessoas mais velhas vão relacionar-se com o livro devido às suas próprias experiências e vivências. E uma pessoa que se interesse muito por liberdade de expressão e controlo governamental vai olhar para este livro de forma diferente. Penso que cada leitor interessa-se por um livro mediante as suas próprias perspectivas. E Vox tem um pouco de cada coisa para cada pessoa. Claro que isso não significa que toda a gente o vá adorar. E isso também é ok. Nunca ninguém gosta de tudo. Já li reviews de 1* para o Frankenstein. Debaixo de que pedra uma pessoa tem de viver para dar 1* a um livro de Mary Shelley? É absurdo. Mas assim que um livro sai para o mundo, as opiniões sobre ele vão ser sempre muito subjectivas. E fiquei surpresa pela quantidade de estudantes do liceu que o estão a ler e me têm contactado. E não apenas raparigas, atenção. Na semana passava tive uma conversa de Skype com uma turma de um liceu do Colorado e foi incrível. Estavam os alunos, a professora que tinha a minha idade e juntaram-se mais mulheres porque tinha sido a avó de um dos alunos que lhe tinha oferecido o livro. Então acho que Vox cruza todas as gerações e isso é tão bom.
Eu li algumas reviews onde leitores diziam que não gostaram do livro porque abordava muito a vida pessoal da Drª Jean e o affair. Bem, eu achei a parte do affair bastante interessante. Porque humaniza as personagens. Torna até Vox mais real…
A questão do affair tem surgido muito nas criticas, nos chats com bookclubs e nas conversas com estudantes. Mas concordo. Também acho que humaniza a Drª Jean [and so glad you say that!]. Penso que, por vezes, as pessoas têm uma visão muito perfeita do mundo, que ninguém faz nada de errado e que as pessoas casadas ficam juntas para sempre e estão apaixonadas uma pela outra até morrerem. Sentem tudo aquilo que disseram no dia seu casamento. Bullshit! Claro que, muitas vezes, o que acontece é que os casais acabam por se afastar ao longo da vida. Mesmo casais que continuam juntos até morrer podem viver separados emocionalmente um do outro. As relações mudam. As pessoas mudam. Algumas pessoas têm sexo como coelhos aos 90 anos [risos] e outras não. E acho que é muito interessante olhar para o carácter da Drª Jean que é uma mulher nos seus quarenta e tal anos, adulta, que já andou por aqui quase metade de um século. Não quero dizer que ela é cínica – e eu acho que também não sou cínica – mas o affair em Vox para mim é até bastante compreensível. Foi uma fuga para ela, particularmente devido à relação com o marido e como ele parece tão… passivo. Eu quis criar um affair porque acho que nunca ninguém vai saber como vai reagir até estar nessa situação. Mas imaginando uma mulher que tenha um ambiente familiar pesado em casa e depois conhece esta pessoa no trabalho e tem toda esta sensação de libertação, sendo sexual ou não, é fácil o amor surgir nesse contexto. Então nunca devemos julgar os outros por aceitarem essa fuga que se proporcionou na sua vida.
Nem devemos tomar tudo como garantido, certo? É essa a mensagem chave de Vox? Estarmos atentos?
Pode muito bem ser. Vamos pensar em alguém que sai de casa e não está a olhar para onde vai e – bang! – aqui vai um autocarro e ele vai-se. O que quero com Vox é mesmo mostrar como uma coisa pode mudar rapidamente sem nós estarmos à espera disso. Mas ninguém sai de casa a pensar que vai ser atropelado por um autocarro. Quantas estradas atravessamos num dia? Contem-nas amanhã. Quantas oportunidades existem de sermos atropelados? E isto não acontece, não é? Estamos aqui e nenhuma de nós foi atropelada esta manhã. Então nós acreditamos que isso nunca vai acontecer. Tomamos a nossa vida como garantida. Achamos sempre que tudo vai ser igual. Vai sempre haver o dia de amanhã. E claro que sabemos que terríveis acidentes acontecem todos os dias. Ou terramotos. Ou mudanças nos sistemas políticos. E a História ensina-nos a mesma coisa: o mundo não anda para a frente exactamente da mesma forma. Há sempre coisas a mudar. Foram essas mudanças que fizeram a História – as boas e as más. Então o tempo para fazermos alguma coisa não é depois. É agora. Antes de acontecer. E isto é uma grande mensagem. Atirem-se ao mundo, votem, participem, sejam activos na vossa comunidade.
E também usarmos a nossa voz…
Exactamente! Vamos pensar nesta capacidade fantástica que temos que é comunicar e que também tomamos como garantida. Porque é tão fácil para nós, não é? O português é fácil para vocês. O inglês é fácil para mim. Tão natural. Mas também é complicado e interessante porque eu não falo português. Porque não é natural para mim? Também podemos olhar para linguagem no geral. Temos cerca de 99% de ADN em comum com os chimpanzés. Porque é que eles não falam? Eles comunicam, claro, mas isso já seria outra conversa para outro dia. Há alturas no livro em que a Drª Jean diz que “podia matar alguém” e ela leva-nos a pensar como usamos esta frase de uma forma tão casual e banal. Quantas vezes não ficamos tão chateados com alguém que dizemos: estou tão furiosa que o podia matar? Mas isto não significa nada, certo? Claro que não vamos matar ninguém. Estes pensamentos da Drª Jean são para colocar o leitor a pensar nestes temas de como a linguagem é tão importante, principalmente quando não a podemos usar.
Como aquela conversa que ela tem no fim do livro com aquele soldado?
Sim, sim! Essa história é real e muito interessante. Um dos soldados conta à Drª Jean que tem uma filha pequena [que não pode falar porque também usa a pulseira electrónica que conta as 100 palavras por dia] e leu uma notícia sobre uma criança na California que tinha vivido encarcerada durante anos na sua própria casa, abusada pelos pais e isolada num pequeno quarto. Nunca tinha comunicado com ninguém e quando foi resgatada tinha quase catorze anos. Então já era demasiado tarde. Esta pobre mulher passou toda a sua vida numa instituição porque nunca conseguiu desenvolver a linguagem. Escrever esta cena foi emocional para mim porque este jovem soldado, que não percebe nada de linguística, está a começar a compreender que a sua filha vai crescer com a própria linguagem limitada. Ele compreende como silenciar as crianças vai ser tão perigoso para o seu futuro. E espero que, ao ler estas cenas, algumas pessoas consigam compreender o poder da comunicação. Eu sei que o livro está a ser popular devido à sua mensagem política na era em que vivemos mas também acho que a parte da linguística o está a tornar cool. Este livro foi, de certa forma para mim que sou académica e já não ensino, uma forma de ensinar algumas coisas sobre a minha profissão aos leitores.
Acho que todos os leitores vão sentir o peso do silêncio. As pessoas ficam ansiosas. Eu fiquei…
Eu também senti essa ansiedade quando estava a escrever! Quando a filha da Drª Jean tem aquele pesadelo em que acorda em pânico e não pode gritar… bem… [pausa para respirarmos as duas]. Para os leitores que ainda não leram o livro, falamos de uma criança que acorda de um pesadelo, pensa que há monstros debaixo da sua cama e começa a gritar e a pedir à mãe para não os deixar apanhá-la. Então temos uma criança descontrolada que não sabe o que está a fazer e apenas grita. E temos toda uma família que está a tentar que ela não fale mais porque quando chegar às 100 palavras… leva um choque. E para piorar a situação, a própria mãe não pode consolar a sua filha. Não pode confortá-la porque já não tem mais palavras. Esta foi uma das cenas mais emocionais para mim. E a cena da vizinha também. Quando a vizinha se suicida com a sua própria voz. Alguns leitores disseram-me que esta parte era um verdadeiro horror. Ora, eu sou fã de terror. E o Stephen King foi um ídolo de infância. Olhem para mim a ler terror aos 13 anos, sim, era eu! Leio-o desde o seu primeiro livro e nunca achei que poderia escrever horror. Mas sempre desejei conseguir fazê-lo. E agora dá-me sempre gozo quando os leitores mencionam essa parte do livro. Ok, consegui! Escrevi uma cena de horror.
E o filho da Drª Jean? Comparei muito as mudanças no filho com os perigos das redes sociais nos jovens de hoje. Concorda?
Todos os leitores querem odiar o filho dela porque ele personifica essa mudança de mentalidade que pode acontecer tão rapidamente nas gerações mais novas. Estas lavagens cerebrais que se fazem através dos pares, das redes sociais e das fake news. Quando nos mostram as coisas de um ângulo que até pode não ser falso mas deixa muitos outros ângulos de parte, está-se a forçar uma perspectiva. E os jovens absorvem as coisas apenas de um ângulo e é aqui que se dá o perigo e as mudanças na mentalidade tão bem refletidas no filho mais velho da Drª Jean. Acho que o mais importante é ensinar às crianças e jovens a importância da pesquisa, da informação e do pensamento independente. E de não caírem nas opiniões das massas, principalmente quando vêm com um # que as torna populares. Eu não acho que estava tão vulnerável aos 15 anos como as jovens de hoje que querem agradar a uma massa de seguidores nas redes sociais. É isto que quero mostrar com Vox. Leiam. Usem a vossa voz. Quer seja sobre política ou o #metoo ou apenas para poderem dizer: não concordo contigo e isso é ok. Não tenho de concordar com toda a gente.
E esta mensagem também é para nós, adultas?
Claro. Quantas vezes não tiveste vontade de dizer alguma coisa mas depois pensaste que era melhor ficares calada? Porque isso te poderia prejudicar no emprego? Ou alguém não iria gostar de ler essa tua opinião? Comigo aconteceu. Tive de pensar: oh, oh, não podes dizer isso Christina, escreveste um livro, tens de o vender, não queres deixar ninguém irritado contigo, não queres uma opinião negativa sobre ti. O que é que estou a fazer? A por um grande X vermelho sobre a minha boca. Agora já sou mais vocal e tento abstrair-me das opiniões negativas e dizer o que penso. Mas acho que temos tendência para nos calarmos. Então esta é uma das coisas que espero estar a fazer para ajudar as próximas gerações.
O Vox pode ser um livro intemporal?
Eu espero que sim porque caminhamos numa direção em que vamos tentar mais e mais silenciar as pessoas que não queremos ouvir. E quanto mais o fazemos, mais relevante um livro como este vai ser. Mesmo que não estejamos a falar de silenciar as mulheres…
Acha que o Vox pode acontecer algum dia no futuro?
Oh, nunca vamos chegar a um ponto em que vamos usar pulseiras electrónicas. Isto é apenas uma metáfora no livro. Mas já está a acontecer. Há crimes de ódio contra a liberdade de expressão. Nas universidades já vemos os alunos a manifestar-se quando lá vai algum orador com o qual o público não concorda. Não querem ouvir. E fazem pressão à universidade para cancelar essa palestra. Apenas porque não se gosta da opinião do orador. Se acho que o Vox pode acontecer? Baby, it’s already happening. And you can quote me on that.
Entrevista feita em Fevereiro de 2018 em Lisboa. O Vox já está à venda nas livrarias e foi um dos livros sugeridos no Book Gang 😉
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