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Foto do escritorHelena Magalhães

#METOO Sim, também fui vítima de assédio. E não podemos baixar a voz


Falar de assédio é como falar de política ou religião ou dinheiro. É daqueles temas meio cinzentos em que nem sempre cai bem largar o assunto à mesa do jantar ou ao telefone com uma amiga. Principalmente quando vem de pessoas superiores (ou que se julgam) que usam o seu poder como arma para tentar chegar um pouco longe de mais. Uma espécie de simpatia mascarada de assédio que, muitas vezes, e quem está deste lado, nem sempre consegue perceber muito bem o que está a acontecer. Além disso, a palavra vítima ainda tem uma conotação muito negativa. Fui vítima. Mas fui vítima mesmo? Ou será que dei a entender algo mais? E só fui vítima se houver marcas? E as psicológicas? Fazem de nós vítimas?

Queria aproveitar o mote do que se está a passar no mundo e o momento em que mulheres um pouco por todo o lado estão a falar de assédio para contar três histórias que se passaram comigo e talvez com isto dar força a muitas outras para gritarem mais alto. Poucas são as pessoas da minha vida que sabem que isto aconteceu porque, lá está, não é daqueles temas que se discuta à mesa de jantar. Mas não tenho vergonha de falar deles. Talvez tenha tido no passado. Mas não agora.


Se um homem vos chama para trabalho e acabam em casa dele, sim é assédio

Quando eu tinha 19 ou 20 anos, fiz trabalhos para várias agências de promoções para ganhar uns trocos extra. Estava na faculdade, os meus pais pagavam-me as propinas e eu queria ajudar de alguma forma e, claro, ter algum dinheiro para mim. Comecei a fazer daqueles trabalhos ocasionais que tanta gente fazia (e faz) e que me parecia dinheiro rápido e fácil sem grandes complicações. Um dos trabalhos que me gerou mais dinheiro foi uma espécie de roadshow da Malibu (bebida alcóolica) que se faziam por discotecas do país. O meu trabalho era muito simples: vestia umas roupas horríveis (e meio sensuais, claro), dançava em cima de uma coluna e, a meio da noite, oferecia shots que davam brindes, etc e tal. Tudo isto era muito giro porque 1) eu sempre dancei e fazer isso até me dava algum gozo e 2) eu não costumava beber álcool e, por isso, estava sempre atenta a tudo e nunca deixava nada descambar para a parvoíce.

Um fim de semana, um dos directores da agência dos trabalhos da Malibu disse que tinha uma série de fotografias minhas tiradas durante os roadshow e perguntou se eu as queria ver para escolher algumas para mim. Ao pensar hoje, claro que isto não fazia sentido nenhuma. Podia ter-mas enviado por email ou algo do género. Mas na minha ingenuidade – e na expectativa de ver as minhas fotografias – disse que sim. Ele veio ter comigo, disse que tinha o cd em casa e que passávamos lá e eu gravava logo para mim as que quisesse. E lá fui eu feliz da vida. Estava sentada no computador dele, a ver fotografias e a escrever num papel os números das que eu queria quando ele – que tinha ido fazer sei lá eu o quê – entrou na sala nu. Apenas isso. Eu era miúda e nem sequer soube muito bem o que fazer. À luz do presente e já com a maturidade dos anos, tenho as memórias disto tudo muito fragmentadas mas, na altura, lembro-me que tudo se passou em câmara lenta. Eu a questionar porque é que ele se tinha despido e ele a dizer algo que nunca me esqueci até hoje: “então mas não queres? Estava sempre a parecer que sim“.

Ele colocou o ónus da culpa em mim. Estava sempre a parecer que sim como se eu tivesse dado sinais de que queria algo e, ao ter ido a casa dele, acabei por dar o sinal verde. Mas eu era uma miúda de 19 anos. E ele era um tipo de 30 ou assim. Ele era demasiado simpático, dava-me demasiada atenção e eu era ingénua o suficiente para achar que também devia ser simpática porque, assim, ele chamava-me para mais trabalhos.

Acabei por conseguir escapulir-me daquela situação e, durante anos, vivi com a certeza de que eu tinha dado sinais. Tinha sido culpa minha. Ou era porque eu me vestia de forma demasiado sensual. Ou porque eu era demasiado simpática. Ou porque eu falava demasiado. Ou porque eu me ria demasiado. Mas não. Ele apenas era um homem que, por ter algum poder, assediou uma miúda.

Independentemente da forma como nos vestimos, falamos ou agimos, nenhum homem tem de assumir que, por isso, estamos a dar luz verde para o quer que seja. Qualquer avanço não desejado, é assédio.  

Se um patrão faz comentários sobre o vosso corpo, sim é assédio

Isto não me deixou qualquer espécie de trauma. Até sinto que me fez crescer e ter alguma maturidade na relação com os outros no trabalho. Anos mais tarde – e já trabalhava numa revista feminina – o patrão era um homem machista e que adorava humilhar as mulheres que trabalhavam para ele. Uma espécie de jogo masoquista em que ele tinha sempre de se continuar a sentir superior. Mesmo que só na cabeça dele. Um dia chamou-me ao seu escritório e, a meio da conversa, e sem qualquer propósito, disse-me: se emagrecesses 5kg ias ficar mesmo bem. E eu disse: ok. Porque não havia nada mais a dizer. Eu já sou magra. Provavelmente não tão magra quanto as namoradas que pesam 20kg e têm corpos de crianças de 10 anos. Mas sou magra o suficiente para não querer emagrecer mais. Como fiquei calada e nada comentei, ele acrescentou: também não é preciso ficares assim, é apenas um conselho de homem que sabe apreciar o corpo de uma mulher.

Isto pode parecer chocante. E até um pouco nojento, é certo. Mas isto foi apenas um comentário no meio de tantos, tantos outros que, na verdade, já pouco ou nenhum teve efeito em mim. Ele era um homem que gostava de fazer estas observações impróprias às trabalhadoras. Quem gostasse, podia ir em frente. Quem não gostasse, só tinha de se manter no seu canto, como eu, e não dar azo a qualquer reação da parte dele. Foi este mesmo homem que, em resposta a uma mensagem minha, me questionou: mas estás naquela altura do mês é isso? Um patrão mandou uma SMS a uma funcionária a questionar isto.

Independentemente do cargo ou da relação que se tem, se um homem faz comentários sobre o vosso corpo, isso é assédio. Não são elogios. Nem é simpatia. E muito menos conselhos. É assédio.

Se um homem vos enrola com propostas de trabalho para vos convencer a jantar, sim é assédio

Eu consigo entender como tantas mulheres puderam ter caído no assédio de Harvey Weinstein que está neste momento a abalar Hollywood e o mundo e a dar voz ao movimento #metoo. Quando queres muito alguma coisa e isso está à distância de um homem te aceitar, ou não, muitas vezes os nossos sonhos falam mais alto e damos por nós a ir no embalo. Quase consigo imaginar os pensamentos: mas se eu fizer isto, entro no filme; mas se eu fizer aquilo, passo no casting. Isto é um mero exemplo.

Quando o meu livro saiu, um tipo da imprensa e casado, contactou a editora. Tinha amado o livro, queria fazer uma proposta para uns textos divertidos e fora de série. A editora passou para mim e eu aceitei. Porque não? Era um tipo a querer propor-me trabalho. Mas da troca de emails, ele pediu o meu número para combinarmos e daí passou para os Whatsapps. O que já não fazia sentido nenhum. Ainda assim – e porque vivemos nesta era das modernices em que, de facto, se podem marcar entrevistas por Whatsapp – eu lá fui dando resposta. Mas as conversas dele passaram para monólogos durante o dia inteiro e, daí, para conversas até à noite que eu alimentava mas sempre a reforçar a ideia do trabalho. Começaram a surgir os convites para jantar e festas que recusava sempre e, para falar sobre a proposta, marcámos um almoço. Avisei a editora deste almoço e lá fui. Do que é que falámos? Dele. Da suposta proposta? Nunca.

Mas porque eu já consigo tirar a pinta mais ou menos a estas coisas, fiz questão de ir para o almoço na atitude o mais “turn off” possível para ele perceber que só queria mesmo falar sobre trabalho. Apesar disso, ele fez questão de me falar sobre a vida dele, casos que tinha tido, outras mulheres, um almoço cheio de piadas e historietas em como ele não era um “sem cojones” como o do meu livro. Por alguma razão alheia ao meu discernimento, ele achou que eu iria achar piada a estas coisas – ele é casado. Mas talvez ele também me tenha tirado a pinta a uma mulher fixe para (mais) um caso extraconjugal.

Saí de lá a ter a certeza absoluta que qualquer trabalho nunca se iria proporcionar mas, ainda assim, continuei a alimentar as conversas por Whatsapp e a rejeitar todos os convites. Até que ele simplesmente deixou de responder. A editora disse-me para voltar a perguntar quando podíamos marcar para falar sobre os textos do livro – o que eu fiz – e ele leu a mensagem e nunca respondeu. Até hoje.

Quando um homem com algum poder na imprensa te chama para uma almoço de trabalho para falar de uma proposta que nunca se vai proporcionar só para ver se dali alguma coisa pode rolar, é assédio. E mais tarde soube que este comportamento dele, afinal, já era bastante comum e outras mulheres já se tinham queixado do mesmo.

Qualquer comportamento indesejado da parte de alguém, é assédio. E ser-se vítima dele não tem de ter uma conotação pejorativa. Enquanto as mulheres continuarem a baixar a voz nestas situações, os homens vão continuar a aumentar a deles. #Metoo é uma forma de mostrar que todas podemos dizer que não.

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