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Foto do escritorHelena Magalhães

Como posso deixar de ser eu?

Sempre quis escrever. Não porque me imaginava uma persona misteriosa e intelectual mas porque sempre achei intrigante esta capacidade de viver e criar muitas vidas. Na impossibilidade de ser actriz - porque há que ser honesta connosco próprias onde está o limite das nossas capacidades - a ficção entrou na minha vida bastante cedo e foi amor à primeira vista. Aos dias de hoje, com trinta e cinto anos, não sei se encontrarei outra paixão tão forte e constante quanto escrever (e ler).


Comecei por escrever sobre isso. Sobre as minhas relações, as minhas amigas e os homens que passavam pelas nossas vidas. Passamos horas a debater estes temas, a permeabilidade das relações nos dias de hoje, a sua fragilidade e constante mudança. Achava curioso que a minha geração vivesse o que de pior as redes sociais têm para nos dar - a solidão digital - e, ainda assim, ninguém escrevesse sobre isso. Tinha 30 anos, sentia-me meio amargurada por, mais uma vez, um homem me fazer crer que eu era a mulher da sua vida quando tinha outra pessoa (com quem entretanto casou e tem uma filha que, espero, seja hoje o verdadeiro amor da sua vida). Comecei a escrever nesse verão e, três meses depois, tinha um manuscrito final. Pequeno, sarcástico, divertido. Nem era suposto ser publicado. Até ao dia em que me entregaram uma cópia física - esperavam que chorasse mas fiquei apenas a olhar estupefacta - achei que iriam desistir dele. Aguardava expectante um email a informar que, afinal, não queriam publicar aquele manuscrito. Porque nem poderia ser de outra forma. A auto-sabotagem faz parte da nossa vida. Alguém iria aparecer e gritar - txaram! Alguém com juízo iria olhar para aquilo e perceber que não deixava de ser uma merda escrita por uma miúda que debitava umas ideias num blogue. Foi publicado. Achavam-no hilariante, fresco, híbrido (no sentido de diferente do que se publicava em Portugal), uma voz moderna sobre o que é ser mulher em Lisboa.


Mas eu não deixava de ser eu. Normal. Banal. Igual a qualquer outra rapariga. Sem grandes pretensões de me mostrar mais do que sou para encaixar na elite literária que, já na altura sabia, era de difícil penetração em Portugal. Sabia que era inteligente, culta, informada, interessante e interessada no mundo. Talvez escrevesse bem. Talvez tivesse algo para dizer. Talvez deixasse de escrever manuscritos que desistia a meio. Talvez até fosse boa nisso. Mas era eu. Continuava a ser aquela miúda de aparelho nos dentes que lia em voz alta no quarto para corrigir a gaguez.


Este livrinho - Diz-lhe que Não, publicado em 2017 - não foi aclamado pela crítica, não foi falado na imprensa, não foi destacado, divulgado ou comunicado porque simplesmente não há espaço (nem interesse) para isso nos media portugueses. Passou absolutamente despercebido como acontece a centenas de escritores em Portugal. Mas acabou por começar a circular nas redes sociais e deu-me uma outra coisa: um contacto directo com centenas e centenas de leitoras que me abordavam constantemente para falar sobre o livro. Como tinham rido, chorado e identificado com as histórias. Este contacto tão directo, mais do que qualquer crítica ou menção na imprensa, deu-me uma espécie de motivação pessoal. Alguém estava a sentir com o meu livro aquilo que eu sentia quando lia algo que me arrebatava.


No final desse ano, peguei num manuscrito que tinha arrumado numa pasta no computador. Era a história da Isabel. Estava escrito até ao momento em que o Afonso vai para Madrid. Tinha-o abandonado nessa parte por achar que estava demasiado infantil. Fui para Madrid, passei lá uns dias e, quando voltei, escrevi o reencontro deles naquela cidade. Ainda assim, continuava a parecer-me desenxabido, sem coerência ou uma mensagem que a tornasse uma história minimamente relevante de ser contada. Uns meses depois fui viver sozinha e, durante as mudanças, encontrei os meus diários do liceu e aquele ano de 1999 em que, adolescente, conheci e me apaixonei (de forma platónica, entenda-se) pelo “meu” Simão. Tornámo-nos amigos quando estava na faculdade e, tal como com a Isabel, aquele amor platónico voltou e tornou-se real o que, na altura, foi surpreendente e mágico e revelador. Contactei-o e encontrámo-nos. Falámos sobre aquela altura, os miúdos que éramos e.o impacto que essa experiência infantil teve em nós enquanto adultos. Foi quando o Simão - personagem - nasceu. De repente fazia-me todo o sentido escrever sobre a forma como idealizamos as outras pessoas e nos apaixonamos por uma ideia em vez da pessoa real e como isso acaba por nos conduzir a relações frustradas. O Raparigas como Nós estava terminado no final de 2018.


Mais uma vez, não esperei nada dele. O medo agora era maior porque já não era um livrinho parvo que escrevi num verão. Era o trabalho de muitos meses de insónias, de pesquisa sobre o impacto das drogas na família, de conversas até de madrugada, de horas isolada em casa ao computador com uma banda sonora (que depois partilhei com as leitoras) e era, acima de tudo, a minha paixão por aquelas pessoas com quem tinha vivido no último ano e meio - A Isabel, a Alice, o Afonso, o Simão, o Zeca, a Marisa das Argolas…


Novamente, temi que alguém me contactasse a dizer que, afinal, não o iam publicar. Estava continuamente a auto-sabotar-me. Esta ideia de ser escritora parece romântica na teoria mas é uma merda na prática e leva-nos por um caminho de constante dúvida e comparação.


Três meses depois de ser publicado, o Raparigas como Nós já era o livro que a editora mais tinha vendido nesse ano. Fui apanhada de surpresa, é certo. Porque, dentro de mim, o livro continuava a ser um falhanço. Foi totalmente ignorado pela imprensa e não teve praticamente nenhuma divulgação. Quem faz um escritor não é a crítica, eu sei. São os leitores. Mas como competir num mercado tão minúsculo como o nosso? Como chegar a mais leitores se ainda é a imprensa a responsável por difundir um autor? Como penetrar numa elite literária que apenas abre as portas aos demais intelectuais?

Eu não sou isso. Nem nunca o vou ser. O que tenho de fazer para ser levada a sério? Tenho de inventar uma persona literária, amargurada e intelectual para agradar? Tenho de dizer que tenho Os Lusíadas na mesa de cabeceira ou que li o Antigo Testamento durante o isolamento para ser digna de entrevistas e artigos na imprensa? Estas duas citações são de escritores novos e conhecidos em Portugal que, não obstante o seu mérito, talento e arte, foram aceites e aclamados pela elite literária, amplamente divulgados pela imprensa. E só isto já vale tudo. Este “lobby literário” que está entranhado em Portugal é causa e consequência do desinteresse dos leitores pela literatura nacional e, claro, das editoras e dos promotores literários. João Reis disse: “Não se trata de haver falta de qualidade em autores com menos de 35 anos, ou de estes não terem maturidade suficiente para escrever bons livros: trata-se, afinal, de servir determinados interesse económicos e círculos de amizade, o que vai por si só excluir qualquer autor sério que não pertença ao tal clube restrito.”


Como posso competir com isto? Como é que eu - um rapariga totalmente banal, que gosta de escrever, ler, falar sobre livros e contar histórias que entusiasmem as pessoas - posso deixar de ser eu?


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