Deixem-me dizer-vos uma coisa: quando Paula se foi embora, o meu registo laboral pós-traumático já estava praticamente imune a tudo. Mais uma pessoa a ir embora em burnout? Pffff o que era isso… mais uma, menos uma. Já estava quase (mesmo quase) habituada a ver entrar e sair pessoas novas. E eu, pessoalmente, já esperava tudo. Todos os dias eram absolutamente animados. Nunca sabíamos o que raio é que mais podia acontecer. Iria Clarice voltar? Ou a Vera dentes de rato desaparecer? Iria Satanás matá-las às duas? Iria alguém em ódio colocar uma bomba na redacção e morrermos todos? Tanta mas tanta gente odiava aquela parelha (Satanás + Clarice) neste pequeno universo que passávamos metade do nosso tempo a imaginar cenários pouco felizes em que alguém os assassinava ou matavam-se eles uns aos outros. Isto pode parecer meio mórbido, eu sei, mas na altura era bastante espirituoso e dava-nos uma certa paz imaginar que, além de nós, havia realmente mais gente a odiar o Satanás. Gente que nós nem sequer imaginávamos. Começámos a fantasiar que deveríamos escrever um argumento de telenovela para a TVI porque tínhamos todos os ingredientes: amantes, sexo, mulheres, patrões doentes, empresas criminosas, droga, álcool e muita confusão para seis meses de telenovela. Lembro-me de chorarmos a rir com as situações. Quem seria quem? Quem eram os atores que iriam interpretar as nossas personagens. Eu dizia que queria ser a Claudia Vieira. A Carlota dizia que seria a São José Correia porque é sensual. A Alice queria ser a Vitória Guerra porque era loira e angelical como ela. A Maria da recepção que se vestia sempre de preto e usava olhos pintados com eyeliner disse que queria ser interpretada pela Inês Castel-Branco e ter cabelo maluco. Começámos a nomear atores para cada um de nós como se isto fosse a coisa mais hilariante que nos tínhamos lembrado. O Satanás tinha de ser um actor excêntrico e com rosto maléfico como o José Wallenstein. E, acreditem, isto tinha imensa piada – mesmo que agora, de repente, possa parecer meio estúpido e infantil.
Depois dos primeiros dois meses em que Marília tentou medir forças comigo e com Carlota, as coisas finalmente atingiram um pouco de paz quando ela realmente percebeu onde estava enfiada e a quem se devia aliar. Não posso dizer que gostava de Marília na altura. Tinha de trabalhar com ela e, na verdade, sou uma pessoa com uma capacidade de encaixe bastante boa. Ela trabalhava literalmente à minha frente (o meu computador fazia parede com o dela), então só me restava atirar com tudo o que se tinha passado para trás das costas e recomeçar do zero. E dar-lhe até oportunidade de se revelar e mostrar o seu melhor lado. Porque acredito sempre que todos temos vários lados. E, no fundo, eu até compreendia a sua posição. Marília entrou numa redacção que já estava criada há muito tempo para assumir um papel de chefia que, até então, nunca tinha existido. Conseguia entender porque razão tinha entrado a matar. Queria impor uma posição e mostrar a sua superioridade mas, infelizmente, foi pelo lado errado. Mas gosto de pensar que todos temos sempre tempo de nos redimir e voltar a conquistar as pessoas.
Uma manhã chegou uma miúda nova para a moda. Tinha cabelo encaracolado comprido, olhos azuis enormes e disse-nos que tinha estagiado seis meses na Vogue antes de vir aqui parar ao nosso buraco. Lembro-me bem dela porque tinha trabalhado como hospedeira na TAP e contou-nos histórias pitorescas de situações que aconteciam dentro dos aviões e houve uma que me marcou e, até hoje, lembro-me dela como se ma estivessem a contar agora: um passageiro (que já estava doente) que faleceu a bordo e o tiveram de arrastar pelo corredor até ao fim do avião, onde o taparam. Mas na hora da refeição – e porque o corpo tinha ficado ao pé dos tabuleiros – ela teve de estar de pernas abertas em cima do morto a passar tabuleiros para outra pessoa. Na altura isto pareceu-me um terror. Eu que já pouco gosto de aviões, fiz-lhe quinhentas perguntas sobre se os passageiros se tinham apercebido (sim, tinham), onde tinham aterrado (no aeroporto mais próximo que ainda ficava a umas duas horas) e como tinha sido depois (ficaram todos de quarentena no aeroporto).
Passámos a manhã a conversar com ela porque, na verdade, não tínhamos nada para fazer. Satanás não aparecia há uma semana, já tínhamos entregue as nossas ideias de temas para a revista desse mês e, agora, só nos restava esperar que ele desse sinal de vida. Logo aí, a nova miúda ficou de pé atrás porque não entendia porque não se estavam já a preparar as coisas. Não há um tema?, perguntou a uma da moda da altura que, na verdade, já nem me lembro quem era porque já tinham entrado e saído tantas miúdas desde o tempo de Anita e Sofia que já tinha perdido o fio à meada. Como assim um tema?, questionou uma delas. E então entendemos: na Vogue estavam definidos temas para todos os meses e, desde cedo, começava-se logo a trabalhar no tema, a fazer shopping, a buscar peças, a preparar as produções, blá, blá, blá. Pouca atenção prestava a estas dissertações sobre moda porque não me interessavam muito. Partilhámos com ela algumas das coisas que aconteciam – e claro os fins de semana de noitadas a terminar a revista – e ela só dizia que nada disto fazia sentido porque na Vogue assim, na Vogue assado. E ela tinha razão – se tinha… – mas não havia forma de mudar a nossa realidade. Lembro-me de Satanás debitar uma deixa constantemente. Deve tê-la lido em qualquer lado e assumiu-a como life quote ou algo do género: Isto é uma comboio em andamento e nunca para, quem não consegue acompanhar tem de saltar na próxima estação. Ouvi esta lengalenga tantas vezes que passei a odiar comboios. Na hora de almoço fomos todos beber café lá fora e quando voltámos a miúda nova da moda tinha-se ido embora. Nunca mais a voltámos a ver.
A única coisa positiva em ter começado a escrever sobre beleza foi que passei a ter muito contacto fora da redacção e, pela primeira vez, a minha percepção sobre a realidade em que vivíamos alterou-se um pouco. A dada altura fui a um almoço de uma marca qualquer e a rapariga da agência, que tinha mais ou menos a minha idade, e com quem já tinha trocado centenas de emails, sentou-se ao meu lado para conversarmos porque, na verdade, já parecia que nos conhecíamos desde sempre.
– Então a Clarice, está outra vez desaparecida? – perguntou-me ela depois de ganhar alguma confiança comigo. – Parece que sim – respondi. Uma das coisas que vos posso garantir é que tinha um medo absurdo de falar sobre o que quer que fosse fora daquela empresa. Estava sempre à espera de ver Satanás aparecer num canto e desatar a gritar comigo. Mesmo quando estava com amigas e queria contar coisas, alterava nomes e fazia toda uma ginástica mental porque tinha sempre medo de estar alguém ao pé que ouvia, que conhecia, que sabia, que contava. Vivia em pânico constante. – Se calhar é desta que morreu – disse, entre gargalhadas. – Como assim? – questionei, chocada. Porque estava literalmente chocada que alguém de fora da redacção tivesse este tipo de pensamentos. – Ouvi dizer que ela se tinha tentado suicidar. Pena que não conseguiu… – respondeu-me, encolhendo os ombros e continuando a comer o seu pato fumado com uma merda qualquer a acompanhar.
Fiquei chocada. Olhei para ela de olhos muito abertos porque aquele comentários incomodou-me, muito mais do que esperava. Dito por um de nós num momento de fúria depois de receber um email a vermelho e maiúsculas com asneiras era uma coisa, por uma pessoa de fora tornava a situação muito mais bizarra. Mas a rapariga explicou-me que os conhecia aos dois porque tinha trabalhado com a irmã de Satanás que era – espantem-se – igual a ele. Ela é o demónio na terra, disse-me. E eu pensei: não, o demónio é o Satanás. Contou-me que a irmã também tinha tido uma revista qualquer (nunca tinha ouvido falar dela) que só durou um ou dois meses porque não pagavam aos jornalistas, deviam milhares à gráfica e a coisa escalou para tribunal e afins.
– A dada altura, ela chamou-nos um dia ao gabinete dela para dizer que os ordenados não poderiam ser pagos mas que ela iria resolver a situação – disse-me. – E resolveu? – questionei. – Não porque depois a revista fechou – riu-se – com ela estava um tipo também da direção que, como quem não quer a coisa, levantou-se e colocou uma arma em cima da mesa. – Estás a gozar? – perguntei em choque. O pato fumado já não me entrava mais. – Juro – disse ela – eles são completamente doidos. Houve discussão, confusão, ameaças. Eu no dia seguinte já não voltei e nem quis saber do dinheiro que me deviam. Não me queria meter com aquela gente. – E depois? – voltei a perguntar – o que aconteceu às outras pessoas? – Algumas foram mesmo para tribunal, soube que chegaram a receber o seu dinheiro mas, sei lá, aquilo da arma foi apenas uma ameaça subliminar, entendes? Foi para passar uma mensagem de medo. E comigo funcionou – riu-se. – Porra – respondi.
Eu já tinha percebido que Satanás não jogava bem com o baralho todo. Já tinha ouvido história de tribunal, de polícia, de ex-trabalhadores e trinta por uma linha mas… armas? Jesus. Não tive coragem de contar aquilo a ninguém da equipa porque era demasiado assustador e tinha medo que chegasse aos ouvidos do Satanás (por vezes parecia que até as paredes tinham ouvidos) mas atrevi-me a comentar ao telefone com Roberto do marketing – que estava no Porto – que me disse para não me preocupar porque eles ameaçavam muito mas faziam pouco. Tanto Satanás como a irmã eram seres humanos descompensados que a única coisa que tinham conhecido na vida era as ameaças e o poder do dinheiro da família. Têm eles mais medo de nós, que nós deles, disse-me Roberto. O que me aliviou os nervos.
Nesse mês fui ao Porto fazer uma reportagem sobre novos restaurantes que estavam a abrir no Douro e fui conhecer a equipa do Porto. Era basicamente constituída por três mulheres e Roberto que estava lá há uns meses para organizar os clientes do norte. A equipa do norte era apenas responsável pelo departamento de marketing e de publicidade, daí que ninguém na redação de Lisboa os conhecia – a não ser pelo telefone. Numa das noites lá, fui jantar com Inês e Tânia. Elas queriam levar-me a um restaurante típico do Puerto (carago!) e, claro, falar sobre o Satanás, a Clarice e a Vera dentes de rato. Passámos o jantar a cortar na casaca e a rir. Estar com elas – mais velhas que eu e que já trabalhavam há alguns anos ali – era refrescante, principalmente por estarem à distância e verem as coisas com outros olhos. Elas queriam saber tudo o que se passava em Lisboa, as cusquices do dia e os dramas entre as duas mulheres e eu acabei por meter a boca no trombone e desbobinei muitas das coisas que se tinham passado nos últimos tempos – desde a devolução do dinheiro aos pneus furados por engano de Clarice. Passámos a noite a rir. Tânia contou-me que, num fecho de edição, Satanás lhe tinha ligado à meia noite e meia a gritar que ela tinha de ir ao escritório para enviar uma lista de contactos que ele precisava.
– O que fizeste? – questionei. Conseguia imaginar que os gritos de Satanás ao telefone devessem ser tão assustadores quanto in loco. – Ora, eu disse que não – respondeu ela a rir – o meu namorado começou a dizer que, se ele voltasse a ligar, atendia ele. – E depois? – perguntei a imaginar como Satanás reagiria caso lhe atendesse o namorado. – Ele disse que, se não fosse, escusava de regressar na segunda-feira. E eu disse que estava bem – disse ela – e desliguei. Mas passado uns cinco minutos, ele voltou a ligar e o foi o meu namorado a atender. – Oh meu Deus tão bom!! – Inês ria-se à gargalhada. – O meu namorado atendeu – contou Tânia – e perguntou quem falava e porque estava a ligar para o telefone da sua namorada aquela hora da noite – elas riam à gargalhada e não conseguiam terminar a história. Por elas rirem, eu própria também não conseguia parar de rir – e foi genial. Ele começou a gaguejar e disse que era engano e desligou – Explodimos em risos. – Então mas não foste despedida – constantei, depois dos risos terem acalmado. – Claro que não. Na segunda feira voltei ao trabalho como se nada fosse e ele agiu da mesma forma – respondeu. – Mas os contactos eram importantes para o fecho da revista? – questionei. – Também não. Eram as listas de clientes do norte. Não devia ter nada com que se chatear naquela noite, vocês deviam estar lá presos no escritório e ele lembrou-se de me chatear a mim.
Ver a forma como elas, da equipa do Porto, reagiam aos ataques de fúria de Satanás foi, de certa forma, libertador e até apaziguador. Elas não se preocupavam minimamente com as loucuras dele. Disseram-me que ele era doente e que usava os trabalhadores como saco de boxe. A única coisa que podíamos fazer era ignorar e não reagir. Inês que, tal como Roberto, tinha conhecido Satanás e Clarice enquanto casal e tinham trabalhado todos juntos antes de abrirem esta revista, disse-me que ele era como cão que não morde. Grita, grita, grita porque é a única coisa que pode fazer. E disse-me algo que, até hoje, me ficou na cabeça: Ele não controla nada na vida dele e é um homem que tem medo da própria sombra. Tem medo que a Clarice faça alguma maluquice porque o casamento acabou porque ele quis começar a foder miúdas novas da revista, sente alguma responsabilidade por ela estar maluca e a única coisa constante na sua vida somos nós – os trabalhadores que dependem dele. O único sítio onde ele se sente poderoso é dentro das quatro paredes da empresa que pode controlar como bem entender. Quanto mais ele gritar connosco, mais frustrado está com ele próprio. Sorrir e acenar é o melhor que podes fazer.
Tudo isto me fez sentido. Ele fumava descontroladamente. Irina comprava-lhe dois maços por dia. Tratava-lhe da casa, da roupa, dos medicamentos, das compras e da vida. Ela não era assistente pessoal na empresa. Era assistente pessoal na vida. Uma vez disse-nos que a casa dele fazia eco porque não tinha mobílias. Apenas tinha uma cama no quarto e um sofá e uma televisão na sala. Isto fez-me confusão. Uma pessoa que não tem a casa organizada, dificilmente terá a vida.
Quando voltei do Porto, voltei efectivamente mais feliz. Sentia que tinha recuperado (ou ganhado) alguma força. Até tinha menos medo. Inês disse-me que o meu lugar ali estava assegurado. Que até então, o segmento de beleza era uma miséria e que, mesmo sem saber o que estava a fazer, eu tinha finalmente criado um segmento com algum peso no mercado. Textos bem escritos, temas pertinentes e novidades de beleza relevantes. Com os artigos de beleza a todo o vapor, a publicidade com marcas de cosmética e maquilhagem tinha voltado a subir. Satanás nunca te vai despedir rapariga – disse-me Inês – tornaste-te uma das intocáveis porque ele depende de ti para ter as grandes marcas a pagar.
E, bem, posso garantir-vos que foi o melhor que me podiam ter dito. Se calhar o que a bruxa tinha previsto fazia mesmo sentido. Se calhar podia passar a estar mais descansada. Se calhar viver com medo constante de ser despedida era estúpido. Se calhar, mas só se calhar, isto batia mesmo tudo certo.
O carro que me iria trazer para Lisboa estava reservado para as oito da noite mas, por culpa de Satanás que não pagou o renting, só saí do Porto às onze depois de muitos telefonemas e de me ter dito que não iria pagar mais uma noite num hotel. Esperava-me uma viagem de três horas, estava exausta, tinha sono e só me apetecia espetar o carro contra uma parede para ele ter de o pagar. Estava a sair do Porto quando recebi uma mensagem dele.
– Já que estás a vir pela auto-estrada, para em todas as estações de serviço e vê quantas revistas estão em cada uma delas.
Ele só podia estar doido se, às onze da noite, eu ia estar a parar em todos os apeadeiros a fazer continhas de revistas. A Vera dente de rato – diretora de marketing como se gostava de assumir – que fizesse esse trabalho. Que pegasse no telefone e ligasse para todas as estações de serviço. Pensei em tudo o que Inês e Tânia me tinham dito. Não podia ter medo dele. Tinha de aprender a dizer que não.
– Boa noite Satanás, estou exausta, espera-me uma viagem de três horas até Lisboa a conduzir e são onze da noite. Peço desculpa mas não vou parar em todas as bombas porque só quero chegar a casa e descansar.
A resposta dele foi hilariante.
– Tudo bem. Então amanhã quero-te às nove na empresa para começares a escrever a reportagem dos restaurantes.
Apetecia-me atirar o telefone pela janela. Não! Apetecia-me partir a janela do carro! Apetecia-me mandá-lo para todos os lados. Mas decidi conduzir com calma, manter os olhos abertos, ouvir música alta e pensar sobre isto depois.
Quando cheguei a Lisboa fui deixar o carro do renting à porta da redacção, peguei no meu carro que tinha lá ficado estacionado e fui para casa. Tomei banho, comi uma ceia e deitei-me. Eram quatro da manhã quando me enfiei na cama e decidi enviar uma mensagem a Satanás.
– Cheguei agora a casa e deixei o carro alugado à porta da empresa. Não estarei lá às nove porque são quatro da manhã e preciso de descansar. Vou tentar chegar na hora de almoço para, pelo menos, dormir sete horas. Espero que compreenda.
Acordei às onze – exausta e a sentir-me como se me tivesse passado um camião por cima – e não tinha nenhuma resposta dele. Pensei que, pelo menos, não me tinha insultado nem mandado para a puta que me pariu como já o tinha ouvido gritar a tanta gente.
E lá fui eu, depois de almoço, para a redacção como se nada fosse. Eventualmente, teria de ser assim que teria de começar a agir perante as atrocidades maldosas que lhe passavam pela cabeça. Quanto mais medo tivesse dele, mais poder ele teria sobre mim.
O que é que aconteceu quando cheguei? Nada. Ele só apareceu às seis da tarde, provavelmente já não se lembrava do que me tinha dito e quando me viu exclamou:
– Ah, já cá estas. Correu tudo bem no Porto?
Nesse dia acreditei no que toda a gente dizia: as drogas que ele consumia jogavam, afinal, a nosso favor.
26 mil Horas Sem Matar o Patrão é uma crónica life-fiction que retrata o dia-a-dia numa revista. Toda e qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. Todas as segundas-feiras irá sair um novo capítulo.
Commentaires