top of page
Buscar
Foto do escritorHelena Magalhães

#6 O sexo oral, o batom da Chanel e o adeus às miúdas da moda


Depois da tempestade vem a bonança. É isso que dizem, certo? E, bem, de certo modo acabámos por viver essa bonança – com o circo da Clarice e da Vera dentes de rato. Pessoalmente, pensei que ela não ia voltar. A presença dela na redacção era absolutamente irrelevante, pouco ou nada acrescentava e, na verdade, até só atrapalhava o nosso trabalho. E não entendia porque razão o Satanás a deixava andar para ali a cirandar e a debitar ordens sem sentido quando o pouco que ela fazia era uma merda. Mas tiro-lhe o chapéu pela confiança em voltar. Os dias que se seguiram ao regresso da Vera foram qualquer coisa de singular. Parecia uma guerra de Titãs: cada uma a soltar raios e coriscos para a outra em pleno palco. Nós éramos a plateia, claro. Ao contrário de Vera, que pouco ou nada falava connosco – olhava-nos de cima sempre que nos cruzávamos com ela -, Clarice precisava de aliadas porque não tinha mais ninguém ali dentro. E como ela conseguia ser manipuladora. Quem a visse falar diria que era uma de nós. Volta e meia vinha sentar-se na redacção. Ficava simplesmente ali. Não trabalhava nem nos deixava a nós trabalhar. Falava-nos das suas compras, da casa, do filho, do casamento falhado, de novos namorados que eu, pessoalmente, tinha a certeza que eram inventados na sua cabeça. E a sua ânsia de nos conquistar e ganhar aliados teve, de facto, frutos para nós. Uma tarde, ficou fechada no seu gabinete durante horas sem que ninguém a visse. Já apostávamos que tinha morrido. Começámos a simular o momento em que teríamos que chamar o INEM ou algo do género. Viria o Correio da Manhã e iríamos relembrar a mulher fabulosa que ela era. Mas não. Nem aí ela seria fabulosa. Já ao final do dia, começou a trazer sacos enormes para a redacção. Com o peso, arrastava-os um a um. Ficámos todos a olhar para ela mas ninguém se mexeu para perguntar se ela queria ajuda. Cada saco ficava-nos pela altura dos joelhos e estavam todos numerados. Quando terminou, trouxe um chapéu com papelinhos e disse-nos para tirarmos um papel. Estavam numerados e cada um correspondia a um saco. Um a um, fomos buscar o nosso saco. Quando os abrimos… mais ninguém trabalhou. Ela tinha esvaziado a pirâmide de cosméticos do seu gabinete e distribuído tudo por sacos. Chamou os homens também.

     – Todos vocês merecem uma pequena recompensa pelo trabalho que se tem feito aqui. Tentei distribuir os sacos equitativamente. Se quiserem, façam trocas entre vocês. E meus senhores, levem para as vossas mulheres – disse ela sorrindo e regressando ao seu gabinete.

Foi uma festa. Espalhámos tudo nas mesas, trocámos batons e sombras, champôs e cremes de corpo. Para quem pouco tinha, isto assemelhou-se a um presente de Natal antecipado. No final contei, só para mim, 10 batons. Maybelline, Clarins, Burberry (nunca tinha pegado em rigorosamente nada da Burberry) e consegui trocar um pack de champôs Kérastase por um batom Chanel. Fiquei a contemplar o batom na mão. Provavelmente ela só o teria dado por não gostar da cor. Era vermelho vivo. Nunca a tinha visto com batons coloridos sequer. Para quem escrevia há meses sobre beleza, agarrar pela primeira vez nesta tralha toda acabou por ser meio simbólico. Comecei a gozar com Carlota a dizer que Clarice provavelmente também me iria querer ensinar a soletrar Burberry. Quando Satanás chegou, ficou parado no meio da redacção a olhar para nós. Rodou sobre ele e entrou disparado no gabinete da Clarice. Calámo-nos instantaneamente.

     – Mas tu passaste-te da cabeça? – gritou ele à porta fechada. Mas tão alto que todos conseguíamos ouvir.      – hmmm hmmm hmm hmm – não conseguíamos ouvir o que ela respondia.      – Nesta empresa ninguém é recompensado por nada. O ordenado é a recompensa deles. Ninguém leva ofertas para casa. Ninguém leva saquinhos. Isto não é a santa casa da misericórdia. É uma regra que acabaste de quebrar nem entendo muito bem porquê. Queres fazer amiguinhos é isso? Queres comprá-los com saquinhos? – continuava a gritar.

A porta abriu-se e todos fingimos que estávamos a trabalhar. Eu apenas estava a olhar para o ecrã do computador mas nem sequer conseguia simular que trabalhava porque estava bloqueada. Ele foi até meio da redacção, acendeu um cigarro e olhou em volta.

     – Esta festinha que acabou de acontecer  – disse, gesticulando com a mão livre, apontando em redor para todos nós – não se vai repetir. Por isso, aproveitem bem as coisinhas que vão levar para casa – disse ele. Inspirou o cigarro, expirou e acrescentou – Quem tem coisas da Chanel faça o favor de colocar na mesa da Vera à saída.

Começou a andar mas virou-se para trás e disse: E não me façam ir revistar os sacos. Sei muito bem o que é que estava no gabinete da Clarice.

Ficámos todos a olhar uns para os outros. Na verdade, eu até achei que ele iria dizer para devolvermos os sacos. Depois do dinheiro, isto não seria nada. Mas senti-me frustrada. Não ia devolver o batom. Sentia que o merecia. Nem era por ser da Chanel – era só porque ele o queria. E eu não queria devolver. Agora era meu. Tinha-o trocado pela merda de três champôs. Carlota disse-me que tinha um blush da Chanel que também não ia devolver. Já passava das sete da tarde, arrumámos as nossas coisas, voltámos a colocar a tralha nos nossos sacos, pegámos nas malas e começámos a ir embora como se nada fosse. A nossa ideia era sair muito rápido sem dar tempo do que quer que seja. Mesmo que, no dia seguinte, ele visse que faltava um blush e um batom, nunca iria saber quem é que tinha ficado com eles. À saída, quando passámos no gabinete de vidro de Vera, ela estava à porta encostada a mexer no telemóvel.

     – Não têm nada da Chanel? – perguntou, interceptando-nos à saída e bloqueando-nos a porta do corredor. Eu fiquei muda porque era bem capaz de me entregar se abrisse a boca.      – Não, não temos – respondeu por mim Carlota, empurrando-me para passar – mas se tiveres dúvidas, podes ver a minha mala. Ou podemos chamar a inspeção do trabalho como tu fizeste.

Vera ficou a olhar para Carlota em silêncio com os olhos semicerrados o que a fazia assemelhar-se ainda mais a um rato. Fez um sorriso de lado e deixou-nos passar. Eu tremia por todo o lado e tinha o coração a bater tão alto que tinha medo que Vera o conseguisse ouvir. Não é que estivesse com medo… bem, estava. Não de Vera. Mas de, sei lá, ser acusada de roubo ou algo do género. Mas Carlota não tinha medo de nada. Trabalhava ali já há alguns anos, conhecia bem aquela gente toda e por vezes duvidava quem manipulava quem. Acho que Carlota sabia tanto sobre esta empresa que o Satanás não queria sequer correr o risco de a despedir. Carlota disse-me que o Satanás e Clarice tinham um fetiche com Chanel, além de ser uma das marcas que mais publicidade fazia na revista. Provavelmente, Clarice só nos tinha dado as coisas da Chanel para o irritar. E eu agradeci por isso. Agora tinha a merda de um batom que simbolizava esta pequena vitória pessoal.

Uma manhã cheguei e estava toda a gente taciturna. As miúdas da moda tinham-se despedido as duas – a Anita e a Sofia. Além da constatação óbvia – no momento, não havia departamento de moda e estávamos a meio do mês -, a mim chocou-me a nível pessoal porque jamais imaginei tal coisa a acontecer. Elas eram as miúdas da moda. Eram como pilares ali. Se até elas se iam embora, o que seria de nós? Fiquei ainda mais estupefacta por Satanás não ter feito nada. Contaram-me que elas tinham dito que se recusavam a trabalhar com Clarice e repetir o que tinha acontecido no mês passado. Anita acrescentou que Clarice não a respeitava minimamente e ela não queria o nome dela associado a trabalhos de merda como o que tinha sido publicado. O Satanás virou as garras contra elas e disse-lhes que a porta era serventia da casa. Tão simples quanto isto.

No dia seguinte apareceram duas novas miúdas: Filipa e Débora. Pareciam simpáticas e decidi que as ia ajudar porque tinham ali caído de pára-quedas, exactamente como eu. Numa hora, elas já estavam ao corrente de tudo o que se passava ali. Toda a gente lhes contou qualquer coisa nova. A Marlene fez as honras da casa e contou as cusquices – era a sua parte favorita do dia. Clarice estava nas nuvens: tinha duas miúdas novas para mandar e que, não a conhecendo, poderia manipular à vontade. Tratava-as por queridas, levava-as às lojas e aos showrooms, iam almoçar juntas e até as levou a um evento de uma marca qualquer. Quando elas chegaram, mostraram-nos as malas que tinham recebido no evento e que Clarice disse que podiam ficar com elas. Impressionante.

Com a chegada da Vera, a Paula pensou que ia voltar a viver no inferno mas aconteceu uma coisa surpreendente. Com Roberto a dirigir o departamento de marketing, não havia muito mais que Vera pudesse fazer ali. E Roberto não era alguém com quem a Dentes de Rato se pudesse esticar. Além dele já conhecer o Satanás dos tempos em que Vera ainda nem existia, era um homem alto, que sabia falar, era inteligente e de certo modo imponente. Satanás colocou, então, a Vera a dirigir o departamento comercial e despediu Mafalda – a rapariga que lá estava há pouco mais de um ano e que, até então, tinha feito bem o seu trabalho. Tinha uns 40 anos, era simpática mas passava sempre despercebida, não interagindo muito com o resto da empresa, a não ser com Paula que, por se sentar no gabinete ao lado do dela, acabava por ter mais proximidade. Perguntei a Paula se a Vera tinha, pelo menos, alguma experiência na área comercial. A Paula riu-se à gargalhada. Nem conseguiria vender chupa-chupas, disse-me. Ela teria que andar a vender publicidade e, na verdade, Vera era a última pessoa nesta empresa que que eu imaginava ter capacidade para vender o nome da revista a quem quer que fosse. Se a Clarice achava que eu os iria envergonhar por não saber soletrar Givenchy à la française, não seria Vera a maior vergonha para esta empresa quando era um pau mandado de Satanás que não sabia sequer falar por ela própria? Do pouco que tinha convivido com ela, tinha ficado com uma imagem muito clara: era alguém que, tal como Clarice, mal abria a boca perdia toda a credibilidade. Mas enquanto Clarice tinha uma imagem faustosa com os seus cabelos compridos, botas de salto alto e casacos de pelo, Vera usava um rabo-de-cavalo mal amanhado todos os dias e vestia-se com saias de bombazina e sandálias de cunha. Basicamente, parecia uma menina da escola no corpo de uma tipa de 40 anos. E pior: Não sabia falar, não sabia argumentar, não tinha garra, não tinha nada. Era engraçado, constatámos nós todos, como elas entravam e saíam mas, sempre que voltavam, mantinham cargos (e ordenados) de direção.

Uma vez, Carlota disse-me para observar Clarice e Vera e ver-lhes as semelhanças – além dos carros iguais que as duas conduziam. Cortesia do Satanás. Eu não conseguia encontrar nenhuma. Elas eram tão diferentes quanto água e azeite. Mas Carlota mostrou-me um outro ponto de vista. Eram duas mulheres que Satanás poderia manipular facilmente, fazê-lo sentir-se poderoso e possante. Dependiam as duas do dinheiro dele, não eram mulheres com uma grande auto-estima ou consciência de si próprias, colocavam-se numa posição de subordinadas e, basicamente, davam-lhe a ele o poder da relação. Dizem que os agressores sabem escolher as suas vítimas. E numa empresa com tantas mulheres que Satanás podia contratar e escolher, fez-me sentido que tivesse escolhido logo a Vera. Seria a única que ele poderia controlar.

Mas Clarice era mais esperta. Ou, pelo menos, mais diabólica e sem qualquer consciência dos seus actos. Uma tarde, chegou à redacção a gabar-se que o carro da Dentes de Rato não ia sair naquele dia da garagem do edifício. Contou a toda a gente, riu-se e congratulou-se. Estava desejosa que chegasse o fim do dia para a Vera ir-se embora e deparar-se com os quatro pneus furados. Mas passado uma hora, um dos seguranças foi até lá. Como Satanás não estava, falou com Irina – a sua assistente – e disse que tinham visto nas câmaras que a Clarice tinha furado os quatro pneus do carro de uma médica do sexto piso. Clarice pegou nas suas coisas e fugiu dali. Acho que nunca nos tínhamos rido tanto no escritório. Elas têm carros iguais e, mesmo assim, Clarice furou os pneus de um carro que nem sequer era igual ao dela. Nem a mesma marca. Mas que raio lhe passava pela cabeça? Irina contou-nos mais tarde que Clarice tinha desmentido tudo, que nunca tinha sido ela e que tinham feito confusão. Satanás pagou os quatro pneus novos do outro carro e não se falou mais no assunto.

Nesse fecho de edição, as (novas) miúdas da moda lá se safaram, nem sei bem como. Clarice tinha marcado a produção de moda no terraço industrial de um hotel em Lisboa e, no dia, não tinha aparecido, deixando as miúdas com a bomboca nas mãos. Saídas da faculdade, sem qualquer experiência, telefonaram para a redacção, pediram indicações, o fotógrafo (que já trabalhava com a Anita há algum tempo) ajudou a seguir o registo que normalmente seguiam e a verdade é que a coisa ficou melhor do que a produção prostituta rockeira que Clarice tinha feito no mês passado. Não querendo desdenhar delas, qualquer coisa tinha ficado melhor.

Sexta-feira à noite, estávamos todos na redacção. Provavelmente com medo que a inspecção do trabalho voltasse a aparecer, Satanás presenteou-nos finalmente com a sua presença. Quanto lhe estaria a custar não estar em casa de pijama a dar-nos ordens por email? Clarice estava no seu gabinete a ler os artigos do mês. Sempre que se cruzava com Vera no corredor, fazia questão de se manter hirta, sendo Vera obrigada a afastar-se ou chocavam uma com a outra – o que teria sido até bastante divertido de se ver. Em resposta, Vera fechava-se no gabinete com Satanás e dava risinhos altos que toda a gente poderia ouvir. O seu objectivo estava a ter efeitos: Clarice estava cada vez mais furiosa. A dada altura, começou a chamar o Satanás para ir ver um grafismo no computador de Marlene. Satanás não respondeu nem apareceu.

No pico da sua fúria, Clarice levantou-se, levou a arrastar as suas botas de salto alto pelo corredor e, sem bater à porta, entrou pelo gabinete de Satanás aos gritos que estavam a querer trabalhar. E o que viu, deixou-a pregada ao chão, boca aberta e vermelha dos pés à cabeça.

A única coisa que ouvimos da boca dela foi: estamos todos a trabalhar e essa puta está a fazer-te um bico?

Eu coloquei as mãos à frente da boca porque estava com medo de me descontrolar a rir. O cansaço misturado com o sono deixava-nos a todos numa espécie de estado de embriaguez que, por vezes, poderia não ter bons resultados. Estávamos a olhar uns para os outros e se alguém se começasse a rir, a coisa ia descambar e íamos todos começar a rir descontroladamente. A nossa boa samaritana Irina – contadora oficial de todas as bisbilhotices – disse-nos mais tarde que Clarice lhe tinha contado que Satanás estava encostado à sua mesa de vidro e Vera dentes de rato, de joelhos no chão, executava o sexo oral mais conhecido como “obrigada por me teres deixado voltar à empresa”. Eu achei que era mais “obrigada por me teres deixado ganhar à Clarice”. Diabolicamente bem jogado.

Clarice pegou nas suas coisas e foi-se embora. Auf wiedersehen.

E nós continuámos ali. Satanás apareceu como se nada fosse, ainda mais arrogante e insuportável do que o normal, e disse que queria acabar tudo nessa noite. Nem que saíssemos dali às nove da manhã. Débora, uma das miúdas novas da moda, disse que estava a ver pontinhos brancos e precisava de apanhar ar. Pegou na mala e disse que ia fumar um cigarro lá abaixo.

E nunca mais apareceu. Até hoje. Nunca chegámos a saber o que lhe aconteceu. Eclipsou-se na noite. Esfumou-se no ar. Na verdade, e vendo in loco o manicómio que esta empresa era, fugiu dali a sete pés. Gostava de ter tido a coragem que ela teve para mandar tudo ao ar e retomar a minha vida feliz e pacata sem toda esta gente maluca.

Mas lá fiquei.

E na segunda-feira seguinte, lá voltei para mais um mês de trabalho. Mas com uma nova notícia que nos deixou eufóricos. Tinha chegado uma carta do tribunal: Mariana tinha aberto um processo contra o Satanás e nós tínhamos sido todos convocados como testemunhas.

A Clarice? Não voltou mais… pelo menos durante uns meses. Havemos de lá voltar.

26 mil Horas Sem Matar o Patrão é uma crónica life-fiction que retrata o dia-a-dia numa revista. Toda e qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. Todas as segundas-feiras irá sair um novo capítulo.

Comments


bottom of page