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Foto do escritorHelena Magalhães

#5 A visita surpresa na redacção


Acho que só depois da Mariana ter ido embora – e de ter assistido in loco àquele momento insólito às cinco da manhã – é que me apercebi de quão frágeis, vulneráveis e indefesos estávamos todos aqui à mercê de duas pessoas absolutamente dementes e desequilibradas. E apesar de tudo, senti que nos agarrámos ainda mais uns aos outros. A própria Marlene também se deve ter sentido desamparada (talvez porque com o despedimento de Mariana, o Satanás decidiu não contratar mais ninguém e elas as duas ficaram com muito mais trabalho) e começou a unir-se mais a nós. Mas foi sol de pouca dura. Ganhei uma grande afeição (e respeito até) para com as pessoas que já lá estavam há mais tempo e que, por isso, me pareciam membros de força da redação a quem me amparar. As miúdas da moda eram (achava eu) intocáveis, a Paula do marketing (com a ausência da Vera dentes de rato) ganhou novo fôlego, Carlota era o meu braço direito. Foi nessa altura que mais histórias ouvi de Clarice e de outros trabalhadores que por aqui tinham passado e que atestavam a demência que por aqui pairava. Falaram-me de pessoas a quem Clarice tinha colocado peças de moda na mala para poderem acusar de roubo e despedir sem pagar indemnizações. Contaram-me que, numa produção de moda num descampado qualquer, Clarice tinha ficado o tempo todo a debitar ordens enquanto as estagiárias carregavam dezenas de sacos e ela andava de um lado para o outro a falar ao telemóvel e a rejeitar todas as ideias de Anita – apesar desta ser a diretora de moda. Tudo aquilo me parecia demasiado Diabo Veste Prada numa versão cafona e excessivamente estúpida porque Clarice parecia uma barbie escanzelada vestida em roupas de luxo com quem era impossível manter uma conversa coerente. Houve uma miúda da moda que tinha lá estado antes de Sofia chegar que, inocentemente, e no fim de uma produção fotográfica de quinze horas, perguntou a Clarice (que morava ao lado das Amoreiras), se podia ir entregar umas jóias que teriam de ser devolvidas no mesmo dia. Deviam ser umas dez da noite e, se ainda fosse para o centro comercial, a miúda (que morava algures na margem sul), ia perder o último autocarro (que apanhava depois do barco). Clarice gritou histericamente que era a diretora e estava-se nas tintas se ela perdia o autocarro ou o barco ou o comboio ou a merda de um transporte público. A miúda recusou-se e disse que, então, entregaria as jóias somente no dia seguinte durante o horário laboral. Sabe-se lá como, apareceram umas luvas e uma carteira na mochila dela. E foi despedida por justa causa dois dias depois.

Estas histórias aterrorizavam-me. Não tinha medo que me fizessem o mesmo a mim – porque continuava a viver no registo do sorrir e acenar e pouco ou nada tinham com que me chatear – mas apenas não conseguia imaginar o que de pior ainda poderia acontecer porque, para mim, isto tudo era o mais macabro que alguma vez me tinha passado para cabeça. Quão ingénua eu era porque muito ainda estava para vir.

Numa manhã, Clarice chamou-me ao seu redecorado gabinete para, palavras dela, nos conhecermos melhor. Enquanto todas nos sentávamos 10 horas por dia num aquário com o ar condicionado avariado e sem estores onde, a partir das quatro da tarde, o sol batia e a sala passava a quarenta graus, ela sentava-se num gabinete com um tapete branco felpudo, ar condicionado no máximo, estores baixos e uma cadeira acolchoada com um pouf por baixo onde, descalça, esticava as pernas. Tal como no gabinete do Satanás, havia uma pirâmide de sacos de perfumes, roupa, malas, cremes e maquilhagem que ela acumulava como o seu tesouro. Diziam que vendia tudo, o que me pareceu tremendamente estúpido porque dinheiro não me parecia ser o que lhe fizesse falta. Irina – a assistente do Satanás – contava que, quando moravam juntos, eles tinham uma pirâmide de cosméticos na casa-de-banho que nunca usavam. Era uma espécie de decoração. Achei aquilo ridículo. O Satanás tinha-me posto a escrever o segmento de beleza no mês passado – depois da miúda que o fazia se ter despedido -, apesar de pouco ou nada perceber disso. Quando lhe perguntei se iria ter alguma formação, ele ficou a olhar para mim como se a minha questão fosse absurda. E Clarice queria testar-me. Ou humilhar-me.      – O Satanás acha que és a pessoa certa para o segmento de beleza – começou ela – embora eu não esteja tão certa disso – ficou em silêncio a olhar para mim – mas, bem, vamos ver se te safas.      – Hmmm… obrigada – respondi, sem saber muito bem o que dizer.      – Este mês vais escrever sobre cremes refirmantes – disse ela. Eu comecei a escrever no meu caderno até ela me ter interrompido.      – E vê se escreves bem. É refirmante e não reafirmante. Não estamos a afirmar nada – disse de forma sarcástica como se eu fosse muito estúpida. Na verdade, não fazia a mínima ideia do que ela estava para ali a dizer mas estava de forma automática a escrever tudo o que me dizia.      – Que marcas já contactaste para a produção de maquilhagem? – perguntou, encostando-se na cadeira.      – Já falei com Chanel, Armani e Givenchy – disse.      – É Gi-Ven-Chy – soletrou – aprende a dizer as marcas para não nos envergonhares. Repete.      – Givenchy – disse eu secamente.      – Gi-Van-Chi – voltou a soletrar, dando ênfase à forma sonora das frases – É francês por amor de Deus. Nem falar sabes, como raio vais escrever sobre beleza? Fiquei calada a olhar para ela e a passar exactamente por estúpida porque percebi que era o melhor a fazer. Quando ela terminou a sua lição de moral sobre beleza, saí e fui sentar-me ao computador. Mais tarde, enviou-me um email com uma lista de tarefas para fazer e mais marcas para contactar. Depois de ler, contei quatro erros ortográficos. Ri-me tanto e bati com os pés no chão. Mostrei a Carlota ao meu lado. Chamei as miúdas da moda. E até a Maria da recepção veio ler. Perdemos uma boa meia hora a repetir os erros dela e a rir. A verdade é que por trás das suas roupas Lanvin e malas Chanel conseguíamos ver-lhe todos os defeitos tão polidamente escondidos mas com tantas pontas soltas que quando começávamos a puxá-las, toda aquela personagem se começava a desconstruir aos nossos olhos. E os erros ortográficos eram apenas uma dessas pontas.

Talvez se perguntem se o Satanás andava escondido ou talvez arrependido/ envergonhado/ atrapalhado/ constrangido (ou qualquer outro sinónimo) pela cena que tinha feito com a Mariana mas não. Soubemos pela Irina que tinha ido de férias e pelas trombas da Clarice foi fácil perceber que eventualmente teria ido com a Vera dentes de rato que, afinal, não tinha desaparecido do mapa. Numa manhã, Irina entrou pelo open space de telemóvel na mão a dar-nos uma série de ordens que ele lhe tinha escrito numa mensagem – para nós.      – Onde é que ele está? – perguntou a Anita da moda, sentando-se em cima da mesa enquanto comia uma maçã.      – Está de férias num hotel – respondeu Irina. Andava pelo open space a dizer o recado que estava destinado a cada uma de nós.      – Mas de férias tipo na praia? – perguntou a Marlene que se sentou ao lado da Anita.      – Duvido que ele vá para a praia – respondeu Roberto que entretanto tinha chegado e se tinha sentado numa cadeira de rodopiar lá no meio – ele é mais de ficar no quarto do hotel fechado. Uma vez foram para Paris – ele e a Clarice – e passaram os dias no quarto e só saíram para ir fazer compras às lojas. Até que ela se sentiu mal na Louis Vuitton e tiveram de o chamar mas ele não queria sair do quarto e mandou alguém do hotel ir lá buscá-la num carro.      – Mas ele não queria sair do quarto porquê? – perguntei eu que entretanto já estava a prestar atenção à conversa.      – Ela sentiu-se mal porque o peso dos sacos que comprou com o dinheiro dele devem ter-lhe dado fraqueza – respondeu Carlota que normalmente não ligava a estas conversas mas às quais também era impossível não se deixar levar.      – Ele fica sempre no quarto – disse Irina – porque não gosta de andar na rua. Já sabem que ele não regula bem.      – E está de férias num hotel a apanhar sol? – perguntou Marlene, rindo-se.      – Ele pediu-me um protetor solar – respondeu Irina – se calhar desta vez saiu do quarto.      – Protetor solar? Mas ele é cinzento e só chega aqui às seis da tarde para já não apanhar sol – disse Alice da decoração que, no posicionamento das mesas, estava sentada à minha frente e de Carlota.      – Ele é mesmo cinzento! – gritou a Anita à gargalhada – porque dorme num caixão.      – Ele é vampiro – gritou a Paula e passámos o resto do tempo a rir com isto.

A maioria das manhãs eram sempre assim – pelo menos até Clarice chegar. Ríamo-nos, contávamos piadas, gozávamos, Irina dava-nos as novidades, falávamos de coisas que na verdade pouco ou nada interessavam mas acredito que seja assim em todos os empregos. Os tipos da contabilidade não interagiam muito connosco – tirando o Arnaldo que andava apaixonado pela Paula e andava sempre a rondar por ali para tentar chamar a atenção dela. Mas o Roberto integrou-se totalmente na equipa e passou a ser visto quase como um confidente. Ou talvez não bem isso… mas a pessoa a quem pedíamos opiniões por estar ali no limbo entre nós e os malucos e que nos podia ajudar a melhorar a nossa vida ali. Ou a não ser tão infernal.

Já perto do fim do mês, o Satanás voltou. E continuava cinzento como sempre tinha estado. Não apanhou sol, deduzimos todos (e mais tarde rimo-nos à brava com isto). Como tinha estado praticamente o mês inteiro fora, quis saber o que estávamos a fazer, que artigos a Clarice tinha aprovado e depois reuniu com as miúdas da moda para perceber como tinha corrido a produção de moda. Elas já nos tinham dito que estava miserável e, provavelmente, a produção mais feia dos últimos tempos. Clarice tinha tido uma ideia de fazer uma espécie de entrada no outono rockeira – palavras dela. Mas o que aconteceu foi que todos os visuais que ela criou não batiam a bota com a perdigota. A modelo parecia uma prostituta do género Pretty Woman em todas fotografias com padrões animais misturados com mini- saias e botas de cano alto. Elas disseram que o Satanás ficou calado a olhar para as fotografias todas. Viu-as e reviu-as. Mirou-as de cima abaixo e no fim perguntou se não havia visuais que tivessem ficado de fora e que pudessem ser aproveitados. Elas disseram que não. E que tinha sido a Clarice a criar todos os visuais sem deixar que a Anita fizesse nada. Ou ele assumia o falhanço de Clarice ou aceitava aquela merda que iria ser uma vergonha. Ele aceitou.

Felizmente para mim – e porque Clarice andou entretida com a moda – deixou-me fazer a produção de beleza em paz e sem me chatear. Eu estava com um pouco de medo, confesso. Na verdade, estava a borrar-me toda. Mas preferia borrar-me a tê-la em cima de mim a dar-me lições de moral. Não fazia a mínima ideia do que havia de fazer. Nenhum deles se deu ao trabalho de me ensinar. Eu tinha caído ali de para-quedas e a coisa era muito simples: ou aprendia sozinha ou levava com uma boa dose de gritos no fecho de edição. Com um bocadinho de sorte também me chamava de puta como fez a Mariana. Passei um dia inteiro a tirar inspirações do Pinterest, vi todas as produções de beleza dos últimos meses, prestei atenção ao tipo de fotografias que ele gostava e depois foquei-me nas tendências da próxima estação e no tema da produção. No fim, fiquei orgulhosa de mim porque, contra todas as expectativas, o resultado final ficou bom para caraças. A maquilhadora fez o que eu pedi, a modelo era fantástica e o fotógrafo já sabia o que tinha de fazer. Todos os astros se alinharam a meu favor.

     – A produção ficou bastante boa – disse-me o Satanás na sexta-feira depois de jantar quando começámos a editar a beleza e enquanto via as fotografias.      – Obrigada – disse eu, sorrindo. Estava a fazer figas para que a conversa não fugisse deste terreno seguro.      – A Clarice ajudou-te? – perguntou, acendendo um cigarro e expirando para cima de mim. Fiz um esforço para não tossir. E a conversa já estava a fugir.      – Bem… – hesitei – ela aprovou o meu tema mas depois não me deu mais indicações. Mas estava ocupada com a moda, também não quis incomodar…      – Não fez a produção contigo? – questionou, interrompendo-me.      – Não, fiz sozinha – disse – mas vi todas as produções que já tinham sido feitas para ter a certeza que fazia igual. Ele ficou calado a olhar para a parede atrás de mim.      – Fizeste bem – respondeu, passado o que me pareceu uma eternidade em silêncio de cigarro na mão.

No sábado à tarde estávamos todos no castigo, que é como quem diz estávamos na pasmaceira à espera que eles acordassem para a vida e nos começassem a entregar páginas corrigidas. No dia anterior, tínhamos saído de lá às quatro da manhã. A meio da tarde, tocaram à campainha do escritório. Ficámos a olhar uns para os outros porque estávamos lá todos, o Satanás e a Clarice tinham a chave e a um sábado à tarde nem sequer ninguém de outras empresas estava a trabalhar naquele piso. Nem os da contabilidade nem a Maria da recepção que, felizmente, não tinham de vir nos fechos ao fim-de-semana. Fui eu que fui abrir a porta com a Alice porque estávamos de pé na impressora.

E esta foi a minha primeira vez cara a cara com inspetores da ACT – aka – Autoridade para as Condições do Trabalho.

Apresentaram-se, mostraram os seus cartões de identificação e disseram que queriam falar com quem estava a trabalhar. Deixámo-los entrar porque, sei lá, não sabíamos o que fazer. E eles foram pelo corredor a olhar para todas as salas e, quando chegaram ao open space, ficaram em silêncio a olhar para todos nós. Parecia que estavam a olhar para uma cena de crime num filme. Como a minha mesa era a mais perto deles, fui a primeira a ser interrogada. Tinha o coração acelerado e a garganta seca porque simplesmente não sabia o que dizer.

     – A que horas saiu saiu do trabalho ontem? – perguntou-me um dos inspetores que tinha uma placa na mão e ia escrevendo notas.      – Hmmmm… saí à hora normal, um pouco mais tarde… à hora de jantar – respondi.      – E o que é isso da hora de jantar? – voltou a questionar.      – Bem, a hora normal de jantar – disse.      – Para si a hora normal de jantar pode ser às onze da noite e para mim às sete – acrescentou, enquanto me olhava de forma séria.      – Foi isso – respondi porque não queria mentir nem queria dizer nada de muito concreto.      – Isso às onze da noite? – perguntou o inspetor.      – Sim… – respondi baixinho.

O inspetor suspirou, olhou para o outro e falou alto para toda a gente:      – Não estamos aqui para vos trazer problemas, na verdade estamos aqui para vos ajudar. E se vão todos mentir sobre as horas a que saíram daqui ontem à noite, não fica fácil. Nada do que disserem pode ser usado contra vocês e a direcção não vos pode punir por qualquer resposta que nos dêem. Saíram todas à hora de jantar? – perguntou. Ficámos a olhar uns para os outros e ninguém se manifestou.      – Antes de subirmos cá acima, fomos à portaria ver o livro das saídas. E estão lá os vossos nomes todos… Marlene, Carlota, Paula, Alice… saíram todas às quatro da manhã. Então? Vão dizer a verdade ou não? Uma a uma, fomos assentindo que sim. Eles continuaram a fazer questões sobre os horários de trabalho, o pagamento das horas extras e as folgas. O Roberto que, entretanto tinha enviado uma mensagem ao Satanás a dizer o que se estava a passar, foi falar com os inspetores. E passado uns minutos recebemos todas uma mensagem dele a dizer que estávamos proibidas de dizer o que quer que fosse. Mas tarde demais. Se ele estivesse lá a trabalhar ao sábado à tarde como toda a equipa e não estivesse em casa de pijama a debitar ordens por email, talvez isso tivesse sido evitado. Ou melhor, se ele trabalhasse durante o horário normal laboral como qualquer ser humano e evitasse que tivéssemos de trabalhar pela noite dentro, nada disto acontecia. A culpa final era sempre dele.

Começámos a matutar em quem teria feito queixa à inspeção do trabalho. Por um lado, estávamos com medo da fúria do Satanás quando chegasse mas, por outro, estávamos excitadíssimos com esta visita surpresa. Pensámos logo em Mariana. Enviei-lhe mensagem a contar e ela disse que infelizmente não se tinha lembrado disso. Só sobrava a dentes de rato. Teria sido ela para se vingar devido ao regresso de Clarice?

Quando o Satanás chegou, perguntou quem tinha aberto a porta aos inspetores. A Marlene nem deu tempo para ninguém responder. Entregou-me e a Alice logo às feras. Acho que nunca antes lhe tinha chamado entredentes tantos nomes. E o Satanás chamou-a para ir com ela ao gabinete.      – Ele sabe que ela é a chiba de serviço – disse-me a Alice – não te preocupes, também não podíamos ter-lhes fechado a porta na cara. E devia saber porque não me chamou, não me culpou de nada nem sequer me insultou. No final da noite – ou melhor, já de manhã – e depois de termos a revista terminada, ele disse-nos que estávamos proibidos de falar sobre o que quer que fosse fora da empresa. Se telefonassem a perguntar a que horas tínhamos saído, nós respondíamos que saíamos às seis da tarde. Se perguntassem se trabalhávamos ao fim-de-semana, nós dizíamos que não. Não seria muito difícil para nós contar uma mentirinha, disse ele.

No último dia do mês, recebemos o ordenado como sempre. Mas vinha um valor a mais: as horas extras de sexta à noite e sábado pagas e descriminadas no recibo. Ficámos histéricas, cantámos, dançámos no meio do open space porque, afinal, a vinda dos inspectores tinha contribuído para uma mudança e íamos passar a receber pelas horas extras que fazíamos todos os meses. Os fechos de edição, as noitadas, os fins-de-semana e as directas já não seriam tão penosos porque passariam a ser pagos conforme a lei.

Mas a festa durou pouco tempo. Quando o Rui da contabilidade chegou, pediu para nos reunirmos todos na redacção e deu-nos a boa nova: teríamos de devolver o valor das horas extras. E em dinheiro na mão. E nesse dia.

Ficámos todos calados, algumas pessoas disseram que se recusavam, que isso era crime, que não nos podiam obrigar a devolver um valor que estava no nosso recibo de ordenado e que iríamos descontar para as finanças. Rui foi muito firme: o Satanás tinha dito que quem não devolvesse o dinheiro, era despedido na hora. Como estávamos todos boquiabertos e a falar alto uns com os outros, Rui decidiu telefonar a Satanás, explicar-lhe as nossas queixas e ouvir a sua resposta. O Satanás disse para Rui colocar o telefone em alta-voz.      – Ninguém nesta empresa recebeu nem vai receber horas extras – disse o Satanás pelo telefone, rindo-se de uma forma estranha – portanto isto é muito simples: quem não me pagar, vai para o olho da rua. Vão ao multibanco, levantam o dinheirinho e entregam a Rui. Quando eu chegar logo à tarde, quero o dinheiro de toda a gente no meu gabinete.

Começámos todos a falar. Se nos uníssemos e nos recusássemos todos a devolver o dinheiro, ele não poderia despedir toda a equipa porque iria ficar sem trabalhadores. Mas tínhamos de ser todos. Tínhamos todos que nos recusar.      – Quando ele chegar, simplesmente informamos que a equipa se recusou – disse a Anita da moda.      – Somos nós todos contra ele – acrescentou a Sofia – nós ganhamos sempre no final.      – Se todos alinharem, eu também entro – disse Roberto, o que nos deu uma certa segurança porque, no final das contas, eles eram amigos ou algo do género. Começámos todos a dizer que sim. Carlota assentiu, Paula também, Alice, Rute do design também, eu incluída claro. Mas Marlene foi a primeira a meter o rabinho entre as pernas e a dizer que não queria arranjar problemas. Rute acabou por concordar com ela.

E foi assim que, um a um, fomos todos ao multibanco levantar as nossas horas extras e compactuar com mais um crime praticado por este homem diabólico.

Quando ele chegou, ao final do dia, entrou no open space e perguntou se estava tudo resolvido. Todos dissemos que sim e Rui entregou-lhe um envelope com o dinheiro de toda a gente.

Atrás dele vinha a Vera dentes de rato. Olhou para todos nós como que a reforçar uma mensagem: ela tinha voltado. Ela estava com ele. E vinha para ficar.

Seria o adeus a Clarice?

26 mil Horas Sem Matar o Patrão é uma crónica life-fiction que retrata o dia-a-dia numa revista. Toda e qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. Todas as segundas-feiras irá sair um novo capítulo.

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