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Foto do escritorHelena Magalhães

#3 A miúda da moda



Toda a gente me bateu palmas na segunda-feira quando lá cheguei de manhã. Afinal, não tinha sido despedida. Mas isso não significava nada porque, nessa semana, uma das miúdas acabou por ser posta no olho da rua e os meus medos confirmaram-se: aqui não havia espaço para qualquer tipo de erro, qualquer falha, qualquer passo em falso. Estava exausta. Podia ter chegado ao fim a minha primeira revista mas, na verdade, o ciclo retomava. 


     – O que é suposto fazer agora? – perguntei, de manhã, a Carlota, vendo a animação e a descontração que pairava por toda a gente.

     – Agora começamos a planear novas ideias para o próximo mês – respondeu-me – mas não é preciso ires com pressa, normalmente ele fica uma semana ou mais sem aparecer.


Parecia que estava toda a gente de férias. As raparigas do design estavam a ver séries nos seus grandes ecrãs e a conversar entre elas. Eram três: A Mariana tinha cabelos californianos compridos e era meio surfista e morena. Usava sempre havaianas e saias curtas – porque tinha efectivamente pernas para isso – e, como vim a perceber, fazia parte do grupo da Paula do marketing, da Maria (recepcionista) e da Alice do segmento de decoração. Era incrível como havia tantos grupos num escritório com tão pouca gente. As outras raparigas do design – a Rute e a Marlene – pouco ou nada falavam com ela e, normalmente, saiam para almoçar com as da moda ou comiam ali e iam beber café com elas à rua. Não consegui criar empatia com a Marlene – falava demasiado alto, era bruta, indelicada e, durante as noitadas, tinha-a visto a ser rude com a Mariana. E foda-se, estávamos todos cansados. Estávamos todos ali há mil horas. Estávamos todos sem dormir. Porque é que ela, só por ser a diretora do departamento de design, achava que poderia falar de forma bruta com uma colega por, na teoria, ser inferior? Passavam-me estas coisas pela cabeça mas, enfim, também mal as conhecia.


A Paula do marketing coordenava (na prática mas não na teoria) o departamento de marketing porque a Vera dentes de rato só chegava quando o Satanás chegava e só aparecia quando ele também aparecia.

     – Quando ela veio para cá, havia uma diretora de marketing que a entrevistou e disse que ela nem para atender telefones servia – disse-me um dia ao almoço.

     – Já cá estavas? – perguntei, curiosa.

   – Não, ela despediu-se e, entretanto, vim eu mas as histórias aqui perpetuam-se. Contaram-me logo isto quando eu cheguei.

   – Então, vieste para o lugar da antiga diretora? – questionei.

Ela deu uma gargalhada alta.

   – Claro que não. A Vera assumiu imediatamente o lugar da diretora de marketing quando ela se despediu.

   – Mas se não servia nem para atender telefones… como é que passou a diretora de um departamento?

     – Fazer broches ao patrão tem os seus bónus – respondeu. 


Nesse dia, Paula contou-me que Vera lhe dava ordens por email basicamente 24 horas por dia como se ela fosse o seu saco de pancada. Dizia-lhe para fazer coisas absurdas que, depois de ela as colocar em prática, o Satanás entrava em histeria e, quando Paula lhe dizia que tinha recebido essa ordem, Vera desmentia tudo. Parecia uma brincadeira idiota de crianças. Um jogo do gato e do rato. A Márcia dizia que a Vera dentes de rato tinha basicamente medo que qualquer outra rapariga roubasse a atenção do Satanás – meu Deus… como se alguém a quisesse. Paula começou, então, a responder a todos os emails de Vera com o Satanás em CC para que não houvesse qualquer dúvida. Vera respondia-lhe constantemente a relembrar que ela era a diretora de marketing e o diretor geral não precisava de ter a caixa de correio cheia com os seus emails insignificantes. Mas Paula continuava a fazê-lo. 


     – Porque é que deixas que a Marlene te fale daquela forma? – perguntei um dia a Mariana, depois de, mais uma vez, a ouvir falar de forma ofensiva com ela.

     – Epá porque me estou a cagar para ela – disse-me – e porque ela tem a mania que manda e eu quero vir trabalhar, receber o meu dinheiro e que ninguém me chateie. Ela fala e eu ignoro-a – disse-me, sorrindo.

     – Mas como é que ela é diretora? Não me parece que tenha mais competências que tu ou que a Rute ou mais experiência ou mais, sei lá, capacidade – para mim, não fazia de facto sentido.

     – Porque foi a antiga namorada do Satanás que a meteu cá e, como era amiguinha dela, ele fê-la diretora para a outra ficar feliz – respondeu.

     – Mas era outra namorada antes da cara de rato? – perguntei. Nunca tinha ouvido esta história.

     – Antes, ele andou a foder com uma do design que, entretanto, ficou maluca e foi embora  – disse baixinho com medo que alguém nos ouvisse. 

     – Ficou maluca como assim? – estava curiosa.

     – Sei lá, foi viajar com ele não sei para onde e nunca mais voltou – respondeu.

     – Mas nunca mais ninguém a viu? E se ele a matou? Whaaaaaat? – perguntei em voz alta.

Ela riu-se.

     – A Marlene diz que ela se arrependeu de se ter envolvido com ele e, como já não podia voltar atrás, despediu-se – disse.


As raparigas da moda, como percebi que eram chamadas, eram três miúdas mais novas e excêntricas. Havia a Anita que tinha cabelos pintados de azul e vestia-se de uma forma exótica que me dava até vontade de ser menos enfadonha com as minhas calças de ganga chatas e os meus tops básicos. Usava vestidos coloridos com meias rasgadas e botins tipo Dr. Martens. Ouvia música alta durante o dia, dançava no meio do escritório sem qualquer pudor, cantava e conversava com todas elas. Nessa altura, percebi que coordenava o departamento de moda – o que fazia todo o sentido. Podia ser meio peculiar mas era organizada e sabia distribuir as tarefas pelas outras duas. Um dia, veio com um vestido preto comprido que tinha um padrão que pareciam umas alfaces. O que me chamou a atenção foi a racha lateral. Sempre que ela andava, via-lhe uma bochecha do rabo. Mas parecia ser eu mesmo a única a reparar ou, pelo menos, a ficar espantada. E, na verdade, até lhe ficava bem de uma forma singular. A Marina era ainda mais nova e andava sempre com ela. Embora pouco ou nada tenha falado com ela naquele primeiro mês, achei-lhe piada. Era divertida de uma forma até meio ingénua. Eu achava que a inocente era eu. Mas a Marina ainda era mais. Usava t-shirts cor de rosa e calções como se tivesse quinze anos e, sempre que chegava, mostrava a toda a gente as roupas que tinha ido buscar. A Sofia era a mais discreta e sossegada das miúdas da moda e foi com ela que criei maior empatia porque começámos a apanhar o mesmo metro de manhã e a conversar durante o caminho. Tinha uma franja comprida e usava uns óculos que lhe tapavam quase metade do rosto o que até lhe dava um ar meio sério e demasiado formal que contrastava com todo o ambiente do escritório delas.


Fora desta salgalhada toda ficava Carlota que, na verdade, se dava com toda a gente e não se dava com ninguém. Nós as duas passávamos horas a conversar e gostei logo dela desde o início. Era fácil falar com ela porque era uma rapariga simples e divertida. Ria-se alto e partilhava comigo muitas das formas de se trabalhar ali. Dava-me dicas e ajudava-me a responder ao Satanás. Uma das coisas que desde cedo aprendi com ela – que já trabalhava ali há quatro anos e era das poucas pessoas que se mantinha há tanto tempo – foi a não ripostar. Ele vai dizer-te merdas porque quer ter uma reacção tua, quer fazer de nós saco de pancada e a melhor forma de agires é simplesmente não reagir às coisas que ele faz, disse-me. E deu-me a analogia do dedo a apontar. Quando apontamos um dedo a alguém (façam este gesto com a mão enquanto estão a ler), temos três apontados para nós. Inicialmente não entendi o que ela queria dizer mas a sua explicação foi óbvia: tudo aquilo que ele nos aponta são, na verdade, defeitos que ele tem. Aponta um dedo para nós mas tem três a apontar para ele próprio. Pedi-lhe exemplos. Ela disse: Ele vai chamar-te burra, atrasada mental, incompetente, e todas as ofensas que podes imaginar. Lembra-te sempre que ele é burro, ele é atrasado mental e ele é incompetente. Não és tu.


A Alice da decoração deu-me outra dica para conseguir suportar os ataques de raiva que o Satanás tinha: Sempre que ele começar a ofender-te ou a dizer merdas, imagina-o nu a cagar na sanita. Eu ri-me à gargalhada mas ela continuou: tu ainda não viste porque neste fecho ele ficou no hotel mas quando as do design colocam os prints no chão para ele poder analisar todas as folhas, ele costuma baixar-se para ver melhor. E vais ver que fica com os pêlos do rabo a sair por fora das calças. Então, imagina os pelos dele. Quando ele gritar que és uma merda, pensa no rabo dele.


Como é que ele podia dizer que as trabalhadoras dele eram uma merda? Questionava-me isto várias vezes ao longo do dia e, naquele meu primeiro fecho, tinha-me apercebido como esta equipa era tudo menos uma merda. Era uma equipa que fazia aquela revista sozinha. Que aguentava o barco. Que tolerava todas a desumanização que ali se vivia. Que se calava perante um louco que, à distância, dava ordens e achava que geria uma revista, que era o melhor, que sabia tudo, que era Deus. Todo um escritório aquário para alojar uma dúzia de trabalhadoras que, todos os meses, colocavam na rua a – palavras dele – maior revista feminina portuguesa. Tinha imaginado uma coisa muito mais extravagante, mais pomposa mas, afinal, era mesmo pobrezinha assim. Deviam ser todas mesmo muito boas trabalhadoras – não, muuuuuuuuito boas mesmo – para, sendo tão poucas, escreverem todos os meses uma revista de 300 páginas. Mas não. Para ele, éramos todos uma merda. E eu já estava incluída.


Como não havia cozinha, toda a gente tinha de almoçar no escritório. Tirando as miúdas da moda que, normalmente, saíam sempre para almoçar fora. As do design às vezes iam com elas mas, regra geral, comíamos todas no open space num conjunto de mesas livres. Havia um microondas num cantinho com um mini-frigorífico e aí podíamos guardar e aquecer as nossas caixinhas de comida. Depois de uma semana e meia sem ninguém o ver, um dia apareceu depois de almoço. Eu e Carlota tínhamos passado os últimos dias a organizar ideias de artigos para o próximo mês. Ele chegou e nem bom dia nem boa tarde. Gritou que estava um cheiro abominável no escritório e que só devíamos comer merda. Nesse dia, deu a ordem de que toda a gente estava proibida de aquecer comida ou de comer nas mesas. Teríamos de levar comida que não precisasse de ser aquecida e de comer lá em baixo no lobby comum do edifício porque ele não queria cheiros no escritório. Mesmo apesar de nunca lá estar durante o dia.


Vá lá, pensámos que ele estava a gozar. Eu pensei porque isto era o mais absurdo que alguma vez tinha ouvido. Mas no dia seguinte vi toda a gente a trazer o almoço em termos – parecia que estava na escola primária – e, na hora de almoço, saímos todas lá para baixo. Foi hilariante. Havia uma zona comum no edifício com mesas e sofás e lá nos sentámos de talheres e termos em cima da mesa. Toda a gente que entrava e saia (imaginem um edifício com uns 15 pisos de escritórios) ficava boquiaberto a olhar para nós. Apareceu um segurança que nos disse que não podíamos comer ali. Nós informámos que tinham sido ordens do Dr. Satanás e que, sem dúvida, ele teria tido o aval da direcção do edifício para nos dar esta indicação. O segurança disse que duvidava e que ia reportar à direcção. Nós rimo-nos, batemos com os pés no chão e gritámos porque, sei lá, isto pode não ter piada mas na altura teve mesmo. Nessa tarde, o Satanás apareceu e disse que tinha pensado melhor e que podíamos continuar a comer no escritório mas que não podíamos aquecer comida porque isso deixava cheiros. Que atrasado mental. Ele devia ter recebido uma ordem da direcção do edifício para as suas funcionárias saírem do lobby com os seus termos de comida.


Nessa tarde, disse a Carlota que iria falar com ele porque me iria recusar a ter uma má alimentação por uma mania estúpida dele. Que isto era desumano. E que os termos de comida eram nojentos. Ela aconselhou-me a ter calma e a deixar passar alguns dias que depois ele se esquecia deste assunto porque era sempre assim. Ele dava ordens estúpidas para lixar alguém com quem estivesse a embirrar mas depois esqueci-se do assunto. Mas eu bati o pé. Disse que isto não era um capricho, era um direito. Todos os trabalhadores têm o direito a ter uma zona de refeição no local de trabalho, não?


Quando ele apareceu já quase às seis da tarde, pensei em ir falar com ele mal o apanhasse. Mas antes de ter tempo de fazer o que quer que fosse, ele entrou no open space na sua forma arrogante sem cumprimentar ninguém e chamou a Marina da moda ao gabinete dele. Ela fez uma careta para todas nós e lá foi. Continuámos ali na pasmaceira do final do dia em que só rezamos para que ele não se lembre de nos pedir nada àquela hora. Passado uns 10 minutos, saiu com os olhos em lágrimas.


     – Fui despedida – disse-nos. Levantámo-nos todas e rodeámo-la. Marina abraçou-se a Anita.

     – Mas o que aconteceu? – perguntou Carlota.

     – Sei lá – fungou Marina – deu-me um sermão de que isto não é uma brincadeira e que eu não sou ninguém para estar a falar sobre esta empresa lá fora.

Chorou durante mais um bocado enquanto arrumava as suas coisas. Estávamos todas a olhar para ela com uma expressão pesarosa. O Rui que fazia a contabilidade entregou-lhe um envelope e despediu-se dela também com um sorriso triste. Naquele momento, estávamos todos solidários com ela. Eu tive mesmo pena. Era boa miúda e gostava do que fazia. Gostava genuinamente de trabalhar neste sítio de merda. Ao contrário de praticamente todas as outras pessoas. 


Depois dela sair, o Satanás também foi embora. Mais um bom dia de trabalho para ele. Carlota olhou para mim e disse-me que se tivesse ido disparatar com ele sobre os termos de comida, a coisa podia não ter corrido bem para o meu lado dado o humor de cão com que ele tinha vindo cá. Ela tinha razão. Aqui não havia espaço de manobra para trocas de opiniões e de ideias. Aqui vingava a lei dele. E não a lei universal. E se ele dizia que não podíamos almoçar comida quente no escritório, não havia nenhum código do trabalho que pudesse informar o contrário. Quem fosse contra ele… era despedido. E quereria eu ser despedida? Não, na verdade não queria.


Quando começámos todas a sair para ir embora, Irina (a sua assistente, lembram-se?) apanhou-nos a todas cá fora e disse-nos entredentes que Marina tinha sido despedida porque se tinha encontrado com não sei quem e tinha comentado alguns assuntos cá de dentro. Mas esse não sei quem conhecia outro não sei quem que conhecia o Satanás e isto tinha chegado aos ouvidos dele. Se calhar a miúda nem tinha dito nada de mal. Mas aqui não havia dó nem piedade.


Olhei para Paula e para Mariana. Tínhamos de ter mais cuidado com as coisas que falávamos aqui dentro. 


Porque como em qualquer outro escritório de qualquer outra empresa… até as paredes tinham ouvidos. 


E – como vim a constatar – num escritório só de mulheres, podemos todas dar-nos muito bem mas, infelizmente, as mulheres também são umas cabras. Mas isto fica para a próxima semana.



26 mil Horas Sem Matar o Patrão é uma crónica life-fiction que retrata o dia-a-dia numa revista. Toda e qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. Todas as segundas-feiras irá sair um novo capítulo.


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