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Foto do escritorHelena Magalhães

#12 Quando paguei 150€ por um creme Chanel que a Clarice roubou para despedir a Marília


Há mais de um mês que não escrevia esta história e perdoem-me quem a segue religiosamente mas nem sempre tenho energia para continuar esta, digamos, telenovela fictícia. Sempre fictícia. Tentando pegar no último capítulo – o chapéu de chuva pegajoso, lembram-se? – posso dizer-vos que a coisa mais excitante que entretanto aconteceu foi que Clarice voltou. Eu, pessoalmente, não estava à espera e bufei por ter de a aturar novamente. A única pessoa que realmente ficou excitada com esta reviravolta foi Marília, que nunca a tinha conhecido.


Uma manhã, ela simplesmente entrou como se nada fosse. Como se no dia anterior tivesse estado ali a trabalhar. Bateu à porta, Sílvia (a nova recepcionista) foi abrir, ela entrou de óculos de sol como se fosse novamente a rainha do baile e desfilou pelo novo escritório, rindo, acenando e dizendo olá olá. Naquela altura, o gabinete que supostamente seria o dela estava fechado à chave e, lá dentro, toda uma feira de sacos e caixas se acumulava como se tivesse estado mesmo à sua espera. Ela abriu o seu gabinete, decorado exactamente como no antigo escritório, puxou o estore para cima, abriu a porta, foi à varanda, voltou ao open space e gritou: adoro o meu gabinete. Nós olhámos todos uns para os outros – ou eu olhei para Carlota – e demos um sorriso amarelo. A madame passou a manhã a abrir sacos e caixas, qual aniversariante no dia da sua festa. Na hora de almoço voltou com um carrinho de compras – daqueles de duas rodinhas e uma pega para puxar -, colocou todos os frascos de perfume e cremes e maquilhagem no carrinho, despediu-se novamente de óculos de sol e saiu porta fora.

As miúdas do design – que agora no novo escritório estavam isoladas numa sala ao lado do gabinete de Satanás – vieram para o pé de nós e perguntaram o que é que Clarice tinha dito e feito durante a manhã. A modos que se improvisou uma reunião de equipa onde basicamente reflectimos sobre o que iria significar a sua chegada (ou seja, se a Vera Dentes de Rato se iria embora) e elucidámos as novas miúdas da moda, Sílvia e Marília sobre a melhor forma de agir perante a bruxa maluca. E a melhor forma era sorrir, acenar e concordar com todas as parvoíces que ela dissesse. Por mais estúpidas que fossem.

Provavelmente sem ter sido planeado, entendemos que passou a haver um horário separado das duas estrelas. Clarice vinha sempre de manhã, chegava cedo ainda antes de todos chegarmos, fazia o que tinha a fazer, conversava, falava ao telefone, chateava-nos, interrompia o nosso trabalho, dizia mal de Satanás, contava mil histórias da sua vida e ia-se embora depois de almoço. À tarde, chegava a Vera Dentes de Rato que pouco ou nada fazia, andava para lá e para cá a arrastar os seus sapatos feios de salto cunha (provavelmente numa tentativa de se igualar a Clarice que podia ser maluca mas vestia-se bem e tinha aquele estilo, sabem, de quem tem dinheiro e não sabe onde o gastar porque não é ganho com o seu trabalho, então, compra tudo o que vê à frente) e passava o fim de dia atrás de Satanás ou a replicar as suas ordens. 

Uma manhã, Clarice chegou com a sua filha (tinha uns 12 ou 13 anos) que entrou e nos disse: olá minha gente. Chamou-nos gente como se fossemos formigas irrelevantes numa linha de montagem. Apresentou-a a toda a equipa, mostrou-lhe o seu gabinete, abriram saquinhos de marcas, escolheram cremes e perfumes, riram, fizeram uma festa lá no seu gabinete, experimentaram roupa e, no fim, colocaram um caixote cá fora e disseram que podíamos levar o que quiséssemos. Eram lenços, malas feias, bugigangas de ofertas de marcas, cremes e os restos das coisas que elas não quiseram. Ninguém se mexeu e ninguém foi ao caixote. Enquanto Clarice via emails, a filha andou pelo escritório a falar com toda a gente e basicamente a incomodar-nos. Dizia que ia ser a futura diretora da revista e a dada altura comunicou-nos que precisava de imprimir uma coisa.

     – Helloooo? Ninguém me ouve? – gritou a miúda porque ninguém se mexeu – Preciso que alguém me imprima uma coisa.

Eu olhei para Carlota e para Alice porque, na verdade, apetecia-me atirar-lhe com um tijolo à cabeça para se calar. Foi Marília que lá foi e lhe acabou por imprimir o que raio ela queria. A miúda era petulante, pretensiosa e já cheia de ares e tinha apenas 12 ou 13 anos. Depois de a ter ido levar à escola, Clarice voltou e passou séculos a gabar a filha, que estava no colégio privado não sei das quantas, que era uma óptima aluna, que fazia isto e fazia aquilo. Sempre que me abordava, eu fazia-lhe um sorriso (mais amarelo era impossível), respondia a tudo o que me perguntava e mostrava-me o mais solícita que conseguia. Não queria que me tivesse nada a apontar e quanto menos se lembrasse da minha existência, melhor. 

Esta foi também uma altura em que acabei por ficar mais próxima de Sílvia – a nova recepcionista – porque fiquei afónica e ela tornou-se a minha porta voz. Sempre que telefonavam para falar comigo, ela vinha para o pé de mim, passava-me os recados, eu sussurrava e ela respondia em meu nome. Sempre que precisava de telefonar, dizia-lhe o que queria e era ela que falava por mim. Como esta minha falta de voz durou uns 3 ou 4 dias, passámos esses dias juntas, ríamos imenso, falávamos (ou ela falava e eu sussurrava) e ela ajudou-me em imensas coisas desse mês. Contei-lhe alguns dos episódios mais bizarros que já se tinham passado e como esta gente era toda maluca e o melhor era ela tentar passar despercebida.

Por outro lado, Marília quis criar uma relação com Clarice mesmo depois de lhe termos dito para a ignorar. Ia sempre conversar para o gabinete dela, dava-lhe graxa, estava sempre a elogia-la e a fingir que as suas opiniões eram válidas. Fazia o que ela lhe dizia e fazia com que, ao seu lado, Clarice se sentisse exactamente como ela gostava de se sentir – superior, inteligente e directora. Alguém relevante. Alguém perfeitamente indispensável. Nem que fosse apenas na sua imaginação.

Ja perto do fim do mês e do fecho dessa edição, ouvimos uma discussão no gabinete de Clarice e os seus berros. De repente, a porta abriu com um estrondo, ouvimos Marília a chamá-la de mentirosa e a sair esbaforida em direção à cozinha e ao terraço da morte. Clarice ficou a gritar para Satanás que não admitia que ninguém lhe falasse daquela forma e que queria já um processo disciplinar para a funcionária.

     – Aquela vaca disse-me para avançar com uma entrevista porque a íamos comprar e aceitou o valor que nos cobraram – partilhou connosco mais tarde – eu pedi-a, traduzi-a e Satanás quando soube disse que jamais se iria aceitar aquele valor por uma entrevista.

     – E depois? – perguntou Carlota.

   – Quando Satanás começou aos gritos a perguntar quem é que tinha sido a atrasada mental a aceitar aquele valor, Clarice disse que tinha sido eu. Eu passei-me e disse-lhe que ela era mentirosa. Sei lá, estava furiosa, saiu-me da boca. Porque a estúpida é mesmo mentirosa.

     – Ai mãe… – disse Sílvia que acabava de assistir ao primeiro drama neste circo.

Clarice começou a tentar ganhar aliados. Queria garantir que todos tinham ouvido Marília a chamá-la de mentirosa, que precisava de testemunhas para avançar com um processo disciplinar, um despedimento por justa causa e que esta funcionária tinha de ser punida. Satanás nunca mais voltou a tocar neste assunto, provavelmente porque sabia que Marília tinha razão e que não ia ficar calada se ele deixasse Clarice avançar com a sua maluqueira. Quando me chamou ao seu gabinete para apurar se eu tinha ouvido, respondi que estava com os auscultadores com a música alta e não tinha ouvido nada. Disse-lhe que apenas tinha visto Marília a sair chateada mas não me tinha apercebido de nada. Carlota e Alice também disseram não ter ouvido. Alice disse que estava ao telefone e não se apercebeu de nada e Carlota disse que estava a fumar no terraço. As da moda não estavam lá no momento e as do design estavam lá longe no seu gabinete. Clarice apenas podia contar com os nossos testemunhos e claro que nós as três nos recusámos a apoiar a sua loucura.

Clarice só dizia que isto não podia ficar assim, que uma funcionária não podia falar como ela falou e só batia nesta tecla enquanto nós tentávamos terminar a revista. Num fim de dia em que nenhum dos loucos lá estava, contámos a Roberto o que se tinha passado. Ele concordou que era melhor ninguém tomar partidos e simplesmente agirmos como se não fosse nada connosco. Eu estava irritada com tudo e disse-lhe que até a estúpida da filha dela nos tinha chamado de “gente” como se fossemos todos idiotas.

     – Passou a tarde a gabar a filha e do colégio e das notas – partilhei, enquanto comia uma maçã e conversava sentada na mesa de Roberto antes de ir para casa.

     – Quais notas? – perguntou ele, que estava a imprimir uns orçamentos quaisquer da publicidade desse mês.

     – Disse que era a melhor aluna da turma – respondi, encolhendo os ombros.

     – O quê? – Roberto riu-se à gargalhada – é mentira. A miúda é burra que nem uma porta. Só passou de ano porque está num colégio privado porque teve não sei quantas negativas e estamos quase no fim do primeiro período e Satanás disse-me que a miúda já vai ter novamente várias negativas e anda à procura de uma explicadora.

Eu estava tão irritada que fiquei delirante com esta informação e, no dia seguinte, contei-a a toda a gente. Claro que agora que já tive tempo para acalmar todos estes sentimentos de ódio, tenho pena da miúda que não tem culpa de estar a ser educada por uma maluca. Mas no limite da minha irritação, tudo servia para aplacar a fúria que sentia contra aquela gente.

Como sempre, tivemos de trabalhar no fim-de-semana para terminar a revista. Nada de novo. Horas e horas e noitadas. Nesse mês, tinha feito um artigo com uma dermatologista que analisou vários cremes e selecionou os que, para ela, eram os melhores para as rugas ou algo do género. E estavam todos em cima da minha secretária. Satanás e Vera Dentes de Rato não saiam do gabinete dele. As duas não se cruzaram, até porque Clarice passou a noite a entrar e a sair, dizendo sempre que ia ao café. Não sabíamos a que café iria ela às três de manhã mas gozámos que deveria ir para o carro chorar sozinha ou cheirar um pouco de coca. Dizíamos que separava a coca com o seu cartão dourado e enrolava uma nota de 500€ para a cheirar. Sei lá, isto era a nossa diversão durante a madrugada até porque gozar com eles era uma forma de nos mantermos sãos no meio daquela loucura toda.

Pelas cinco da manhã, Satanás disse para nos irmos embora porque só iríamos terminar tudo no dia seguinte. Que bom, mais uma noitada. Clarice disse a Marília para ela fazer uma merda qualquer antes de se ir embora e ela, coitada, lá ficou. Nós saímos todos. O meu carro estava estacionado numa rua paralela ali no Chiado onde tinha encontrado lugar e saí com Carlota e Alice porque lhes ia dar boleia. Íamos a conversar pela rua silenciosa quando Clarice me ligou.

     – Já chegaste ao carro? – perguntou-me.

   – Não, porquê? – questionei. Só pensava que a louca me ia pedir para regressar por qualquer motivo e só queria ir para casa comer e dormir.

     – Por nada, já não é preciso – disse ela – então até amanhã – cantarolou.

Achei aquele telefonema bizarro mas, enfim, vindo dela o que é que não era bizarro? 

Quando cheguei ao meu carro, tinha o vidro partido. O interior tinha sido remexido mas não me tinham levado nada a não ser o GPS que estava no porta-luvas. Fiquei chocada. Era só o que me faltava àquela hora da manhã. Comecei a chorar, não pelo GPS roubado nem pelo vidro partido, mas porque estava sem dormir há quase vinte e quatro horas, tinha fome, tinha sono, tinha fúria, tinha ódio, tinha mil e um sentimentos estrangulados dentro de mim. Fui para casa sem vidro, com o frio de cortar de Dezembro, deixei o carro sem vidro na minha rua e fui dormir. 

No dia seguinte – domingo – liguei para a seguradora e fui à polícia. Sabia que isto não iria servir de nada mas tinha de ter uma declaração qualquer em como tinha feito participação de roubo e danos na polícia. Informei Satanás do que me tinha acontecido e que não sabia a que horas iria chegar porque tinha de arranjar quem me colocasse vidro no carro. Pela hora de almoço (e depois de termos saído de lá às cinco da manhã), Satanás começou a ligar-me. Não atendi porque nem queria acreditar que já me estava a chatear por estar atrasada.

Mandou-me uma mensagem: Helena, já são duas da tarde e toda a gente está a trabalhar e tu ainda não apareceste. Se te partiram o carro, vem de comboio, vem taxi, vem de avião, vem como quiseres. Mas é bom que chegues. E rápido.

OH MEU DEUS! Apetecia-me mandá-lo para todos os lados. Nem um pingo de consideração. Nem uma preocupação. Tinham-me assaltado o carro na rua da empresa, fora de horas e por culpa dele, só dele e apenas dele, por estar a trabalhar de madrugada e ainda por cima sem ser paga para isso. Tinha saído de lá às cinco da manhã. Tinha dormido cinco horas. Tinha ido para a polícia. Tinha tentado procurar uma oficina aberta ao domingo que me colocasse um vidro. Era domingo, repito. E ele estava a mandar-me mensagens a ameaçar-me.

Claro que desisti porque ninguém me iria arranjar o carro a um domingo. Pedi a Carlota que me desse boleia para casa quando saíssemos de lá (porque já sabia que iria ser mais uma noitada) e fui de comboio para o Chiado. E quando pensei que nada de pior iria acontecer, Clarice estragou-me o dia.

Quando lá cheguei, Clarice chamou-me ao seu gabinete ainda antes de me ter sentado. Como se tivesse à minha espera e tivesse tudo preparado.

     – Traz-me os cremes que foram escolhidos para esta edição. Quero já todos no meu gabinete – disse-me.

Fui à minha mesa, coloquei tudo num saco e fui lá entregar-lho. Ainda não tinha voltado a chegar à minha mesa quando me voltou a chamar.

     – Onde está o creme da Chanel que foi escolhido pela dermatologista? – perguntou, com o saco despejado em cima da sua mesa.

     – Estão aí todos – disse-lhe.

     – Não está o da Chanel, logo não estão aqui todos.

Voltei à minha mesa para ver se me tinha esquecido mas não havia creme nenhum. Procurei em todos os sacos, nas mesas, no meio da confusão, nas gavetas mas não havia qualquer paradeiro do fatídico creme. Que merda, pensei. Só me faltava esta. Voltei ao seu gabinete para dizer que não sabia dele, ela mandou-me fechar a porta e sentar-me.

     – Se o creme não está na tua mesa é porque alguém o roubou, não achas? – perguntou.

     – Acho que ninguém queria o creme para nada – respondi – talvez Satanás o tenha levado?

    – Não, Satanás não o levou – interrompeu-me ela – a Marília foi a última pessoa ontem a sair de cá, não achas que foi ela?

    – Acho que não – disse eu, começando a entender o que estava a acontecer e o que ela estava a querer fazer – Marília não iria tirar o creme e até hoje nunca nada desapareceu, então nada disto faz sentido.

     – Mas ontem quando te foste embora, o creme estava em cima da mesa? – perguntou-me.

     – Não sei, não reparei, acho que sim – respondi.

     – Se quando te foste embora o creme estava lá e agora quando chegaste já não está e Marília foi a última pessoa a sair daqui, só pode ter sido ela, não achas? – perguntou, cruzando os braços e encostando-se na sua cadeira.

     – Por essa lógica, pode ter sido Marília, ou Carlota, ou Roberto ou eu até – respondi.

A sua postura mudou imediatamente. A Clarice louca voltou das cinzas.

     – É assim: este creme desapareceu e alguém vai ter de o pagar – disse-me ela.

     – Mas foi uma oferta da marca, não foi um gasto da empresa – respondi em choque.

   – Mas é um creme que pertence à empresa e alguém tem de pagar pelo seu desaparecimento – declarou – Se não o queres pagar porque não foste tu que roubaste, terás então de culpar Marília porque foi a última a sair daqui ontem. Só pode ter sido ela.

    – Não vou culpar Marília por uma coisa que ninguém sabe se foi ela que fez, não há provas, coitada – disse, tentando acalmar a situação.

  – Helena, isto é muito simples: se não queres culpar Marília, terás de ser tu a pagar o creme. A escolha é tua e acho que não queres pagar um creme tão caro – disse, rindo-se.

   – Muito bem – respondi, levantei-me e saí do seu gabinete. 

Estava possuída. Comecei a somar dois mais dois. Ela queria despedir Marília por a ter chamado de mentirosa (que ela era) numa guerrinha pessoal estúpida e infantil por ser uma profissional de merda (e uma diretora de fantochada) mas não conseguia porque Satanás não alimentava este seu amuo. Ela tinha-lhe pedido na noite anterior para ficar lá a acabar uma merda qualquer para Marília ser a última a sair, tinha tirado o creme antes de todos chegarmos hoje e tinha simulado toda esta história porque sabia que eu não o queria pagar. 

Eu podia ter culpado Marília. Afinal, ela tinha-me tratado como merda quando cá chegou e tinha feito tudo aquilo que fez para me despedirem (leiam os capítulos anteriores). Mas isso eram águas passadas. E jamais iria conseguir viver comigo própria sabendo que tinha acusado uma colega de um roubo que sabia que não tinha cometido. A única coisa que não batia aqui certo era o assalto estranho ao meu carro mas aquele telefonema dela para saber se já estava no carro também tinha sido suspeito. Clarice já tinha, em tempos, furado os pneus de um carro que achava ser o da Vera Dentes de Rato, lembram-se? Conseguia imaginá-la, numa das vezes em que disse que ia ao café na noite anterior, a procurar o meu carro (que ela sabia qual era), a partir-lhe o vidro e, para simular um assalto, a tirar o GPS do porta-luvas. Mas isto não me fazia muito sentido. Falhava aqui qualquer coisa nesta história…

Durante o jantar, e porque Satanás, Dentes de Rato e Clarice não estavam, contei o que se tinha passado a toda a gente. Marília ficou em choque.

       – Eu pago a meias contigo – disse ela – não acredito que ela fez isto tudo para eu ser despedida.

     – Ela é maluca – respondi, enquanto comia um prego nojento que tínhamos encomendado para levarem ao escritório.

     – Obrigada pelo que fizeste… – disse Marília, meio envergonhada, consegui perceber.

     – Acho que qualquer outra pessoa faria o mesmo, somos todos colegas, temos de nos proteger. Foi ela que tirou o creme e simulou esta história toda para eu te acusar – disse-lhe – só não consigo compreender isto do meu carro.

     – Já pensaste – interrompeu Carlota – que isto também pode ter sido feito por ela?

     – Mas porquê? O que é que ela teria a ganhar? Eu nunca lhe fiz nada foda-se – respondi.

    – Então, pensa: se te partissem o vidro do teu carro, era um gasto extra que terias este mês, certo? Como ias estar chateada pelo dinheiro que ias pagar pelo arranjo, não ias querer pagar o creme – concluiu.

     – Oh meu Deus!!! – gritei – Faz todo o sentido!

    – E ela ligou-te ontem à noite. Porque razão te iria ligar para saber se já tinhas chegado ao carro? Ela queria confirmar se tinha partido o vidro do carro certo mas depois ficou sem saber o que dizer.

Não consigo definir o que senti. Estava em fúria, sentia-me impotente por não poder fazer nada, por não ter provas, por não poder sequer alegar que tinha sido ela a partir-me o vidro do carro. Queria ir-me embora, apetecia-me despedir-me, partir e esvaziar os cremes todos dela, espezinhá-los e fazer com que ela ficasse sem qualquer cremezinho estúpido. Apetecia-me partir tudo. Destruir todos os computadores. Dar pontapés nas portas deles. Atirá-los da varanda ou do terraço da morte. Sei lá o que mais me passou pela cabeça.

Quando Clarice voltou, chamou-me e perguntou se já sabia o que queria fazer. Disse-lhe que não iria acusar Marília de nada. Clarice abriu a porta do seu gabinete, chamou por Satanás e disse em frente a toda a gente: desapareceu um creme Chanel porque alguém o roubou. Como a beleza é o departamento da Helena, ela terá de pagar o creme. E para a próxima, guarda melhor as coisas da empresa.

Eu olhei para Satanás, não queria acreditar que ele ia deixar aquela história estúpida ir avante, sabendo perfeitamente que tudo isto era inventado pela maluca da ex-mulher. Ele não disse nada. E toda a gente estava calada a assistir à cena.

     – Podes ir agora lá abaixo ao multibanco, levantas o dinheiro e pagas o creme à empresa. E são 150€ – disse ela, sorrindo.

Eu levantei-me, peguei na carteira, bati com a porta e fui ao multibanco. Levantei os 150€ que mais me doeram a levantar. Meu rico dinheiro. Mas aquela puta não ia ganhar a sua guerra. 

Regressei ao escritório, bati à porta de Satanás, entrei, coloquei o dinheiro na sua mesa, voltei a sair e bati com a porta dele. Neste momento, já me estava nas tintas para esta merda toda. 

Terminámos a revista e quando nos estávamos a ir embora – eram, adivinhem, sim… seis da manhã – Satanás entrego-me uma chave.

     – O armário que está no corredor é teu e és a única pessoa a ter a chave. Passa a guardar tudo lá para que esta história não se repita.    – Gostava de ter um recibo a confirmar que paguei este valor à empresa – respondi, mesmo sabendo que nunca iria ter recibo nenhum porque isto era um crime.

Peguei na chave, coloquei-a na mala e fui para casa com Carlota.

O vidro do meu carro? Tive de ser eu a pagá-lo porque a empresa não contemplou este “acidente” como parte do seguro que cada funcionário “supostamente” tem. 

26 mil Horas Sem Matar o Patrão é uma crónica life-fiction que retrata o dia-a-dia numa revista. Toda e qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. Todas as segundas-feiras irá sair um novo capítulo.

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