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Foto do escritorHelena Magalhães

#11 O guarda-chuva pegajoso e uma discussão a meio da madrugada


Uma manhã, cheguei ao escritório e Rute e Marlene – as miúdas do design – estavam a dizer que tinham a certeza absoluta de que havia câmaras neste sítio novo. Eu ri-me. Porque imaginar Satanás a gastar dinheiro num sistema de vigilância era demasiado hilário. Ele nunca o faria. Iria preferir, sem dúvida, atazanar-nos o juízo com a sua presença do que vigiar-nos através de câmaras. De qualquer forma, passámos uma parte da manhã a revistar tudo e mais alguma coisa. Ao lado da porta da entrada – que ficava de frente para este novo open space versão cave sem luz – havia um grande quadro colorido e horroroso. E de repente começámos a questionar-nos porque razão ele haveria de ter posto um quadro virado para nós quando, no outro escritório, não havia qualquer sinal de vida humana ou criativa. Ele gostava das salas o mais parecidas com uma prisão ou um hospital. Ninguém queria ir lá ver se ali se encontrava a fatídica câmara de vigilância. E divertimo-nos bastante mesmo que, a medo, não quiséssemos acreditar que ele nos espiava.

     – Se ele nos espiasse, já tínhamos todas sido despedidas – disse Carlota serenamente.      – Nem mais, porque ele já tinha ouvido tudo o que dizemos dele e da maluca da Clarice e da Dentes de Rato – acrescentou Alice que estava sentada ao meu lado a folhear uns catálogos de decoração para pesquisar tendências para esta estação.      – Mas a câmara pode não ter som – notou Marlene – pode ser daquelas só de vigilância só para ele ver o que estamos a fazer.      – Então vai lá – disse Rute entre risos – vai lá tirar o quadro da parede.      – Porra, eu é que não – respondeu Marlene.

A campainha tocou e demos todas um salto. Era Marília que, como sempre, nunca chegava a horas.      – O que é que se passa aqui meninas? – perguntou, enquanto pousava a mala e o casaco na sua cadeira e vendo-nos a todas sentadas em cima das mesas no meio da redacção – reunião a esta hora?      – Toda a gente acha que aquele quadro é uma câmara de filmar – respondi eu, atiçando-a com elogios – acho que devias lá ir tu confirmar. És a editora. És a nossa superior e tens de nos proteger.      – Que piadinha – respondeu ela, ligando o computador.      – Vá lá Marilia, vai lá tu – começaram Marlene e Rute a implorar.      – Vocês estão mas é malucas. Eu é que não me meto nestes filmes – disse ela, levantando-se de cigarro na mão e indo até ao terraço da morte para fumar.

Depois de tirarmos à sorte, calhou-me a mim ir lá. E agora tinha de ir. A ideia era eu tirar o quadro da parede e ver se, na parte de trás, se encontrava alguma câmara. E lá fui eu a pensar porque me calhavam sempre a mim estas batatas quentes. Só imaginava que ele estaria em casa a ver-nos e a ver-me aproximar do quadro. Iria ver a minha cara cada vez maior e maior e maior. Se calhar ia ver os meus pêlos e restos de pequeno almoço nos dentes. Até que tirei o quadro que, afinal, era bem leve como uma pena e o virei ao contrário. Na parte de trás não se encontrava nada.

Rimos à gargalhada mas, ao mesmo tempo, aliviadas. Roberto chegou no meio daquela palhaçada toda e, depois de lhe explicarmos todo o filme que tínhamos feito, disse que só podíamos ser malucas.

     – Satanás jamais iria por aqui câmaras de vigilância – disse ele, dirigindo-se para o seu novo gabinete pessoal. Aquele que a Vera dentes de rato queria.      – Então é porque ele confia em nós – disse eu – vêem? Ele confia em nós!!! – gritei para todas.      – Acho que ele não confia mesmo em ninguém, nem na própria mãe – disse Roberto – mas também é unha de fome e nunca iria pagar um sistema de vigilância.      – Mas comprou aquele quadro para tornar o escritório menos feio – respondi, encostada à porta do gabinete dele.      – O quê? Aquela coisa feia? – perguntou Roberto – aquilo já cá estava e ele deixou ficar.

Pronto! Mistério resolvido. E eu sabia que ele jamais iria ter a iniciativa de comprar um quadro para tornar o escritório algo menos parecido a um bunker de guerra infeliz.

Por esta altura, já havia uma série de gente nova na redacção. É possível que vá perdendo o fio à meada da evolução do pessoal porque, nas 26 mil horas que passei aqui a trabalhar, vi tanta gente diferente a chegar e a ir embora que a minha própria mente não consegue processar nem sequer lembrar-se de toda a gente. No momento, estávamos sem equipa de moda e Satanás contratou três estagiárias acabadas de sair da faculdade de moda. Eram as três colegas de turma e esta era a sua primeira experiência laboral. Fiquei logo boquiaberta quando nos disseram que só recebiam 150€ porque era um estágio. Portanto, iam trabalhar em horário laboral (leia-se: com hora de entrada e sem hora de saída, fins-de-semana e fechos de edição incluídos) e Satanás apenas lhes ia pagar 150€ de custos. Roberto disse-me que ele estava farto de fazer contratos a miúdas que ao fim de dois meses se iam embora. E eu mandei uma gargalhada histérica e disse que ele devia perceber que a culpa era dele e, talvez, mudar a forma de se trabalhar nesta empresa diabólica. Mas não. Satanás continuava a acreditar que o problema era das pessoas e nunca dele ou da empresa. O problema não era ele ofender as pessoas. Nem as directas. Nem os maus tratos verbais. Nem as condições miseráveis. O problema era as pessoas que ele contratava e se iam embora.

Para este novo escritório veio também uma nova recepcionista porque nunca mais tínhamos tido notícias de Maria. Chamava-se Sílvia e, pelo menos, iria ter uma posição mais privilegiada dado que a secretária dela se encontrava no nosso open space (exactamente à frente do famoso quadro) e, por isso, não iria estar isolada como Maria tinha estado o tempo todo. E para o marketing vieram também duas novas miúdas (ambas loiras, ironicamente) que a Vera Dentes de Rato fez imediatamente questão de odiar. Uma delas era surfista, de pele morena e cabelos descolorados pelo sol. A outra era muito magra e de uma forma meio rebuscada parecida com a Dentes de Rato e com a Clarice. Começámos a meter-nos com ela a dizer que o Satanás se iria apaixonar por ela e isso ia ser bom. Enumerámos as vantagens: um carro igual ao delas, deixar de ter hora de entrada, limpar o rabinho a notas. E ríamo-nos. Mas ela não achava piada nenhuma. Mas a brincadeira passou para um patamar sinistro quando a Vera dentes de rato deixou de aparecer e nos começámos a questionar o que tinha acontecido. Satanás estava constantemente a chamar a sósia nova ao seu gabinete e, para nossa infelicidade, começou a chegar mais cedo ao escritório. Coisa rara e que só poderia ter um propósito. Estávamos sempre a questioná-la o que é que ele lhe dizia e ela não respondia nada de jeito, enrolava as conversas e dizia que queria trabalhar.

     – Ela já está indrominada – disse Marlene um dia ao almoço. Estávamos todas sentadas no chão do terraço da morte a comer ao sol de outono.      – Coitada, é apenas uma miúda – respondi eu – deve estar provavelmente tão assustada quanto nós todas estávamos quando para cá viemos.      – Claro mas ele agora só lhe dá atenção e está sempre a chamá-la para ir ao gabinete dele – disse. Marlene que adorava exibir a sua confiança com Satanás e mostrar que tinha uma relação especial com ele (na verdade, só porque era chiba), odiava que houvesse um novo pavão no zoo.      – Pode achar-lhe piada porque ele acha piada a qualquer mulher nova que para cá venha mas tenho a certeza absoluta que a miúda tem juízo – disse Carlota.      – Eu também acho – concordei.

Mas, ao mesmo tempo, estávamos curiosas. Roberto contou-nos um dia que Satanás pretendia convidar a miúda nova para jantar. Por isso era oficial. A Vera dentes de rato tinha desaparecido, da Clarice ninguém sabia e Satanás já andava empolgado com uma nova pomba no ninho. Mas um dia ele não apareceu. E no dia seguinte também não. A miúda pouco ou nada falava connosco, era bastante sossegada, a colega morena surfista também não adiantava grande assunto e nós vivíamos em pulgas para saber o que estava a acontecer. Até nos sentíamos más influências a tentar conversar e elas sempre a dizer que tinham de trabalhar. Numa quarta-feira, as miúdas disseram-nos que iam ao Porto no dia seguinte. Foi quando soube que Inês e Tânia do Porto já não faziam parte da empresa. Satanás tinha acabado com o escritório do Norte e informado as duas que teriam de vir para Lisboa. Como elas moravam e tinham a família no Porto, recusaram-se a fazer essa mudança. E ele disse que iria extinguir o posto de trabalho delas e, como tal, não havia mais nada a fazer. Assim sem mais nem menos. E as miúdas lá foram reunir com uma série de pontos de venda, controlar as vendas do norte e fazer sei lá que mais. Sílvia alugou-lhes um carro, preparou os sítios que elas teriam de ir e lá foram elas.

Na sexta, apenas a colega morena apareceu. Da nova apaixonada do Satanás nem sombra. E ela contou-nos que Satanás tinha passado o tempo todo a mandar-lhes mensagens com informações contraditórias. Ora dizia para irem a um sítio, ora a outro. E à noite, enquanto começavam a viagem para Lisboa, disse-lhes para pararem em todas as bombas de gasolina da A1 para ver quantas revistas estavam nos expositores – meu Deus, como me tinha feito a mim! Mas eu tive o bom senso de lhe dizer que não o ia fazer. As pobres coitadas fizeram e chegaram a Lisboa às três da manhã. Mas se ele estava apaixonado por ela, porque razão se teria tornado infernal? Assim não havia conquista que durasse. Feitas as contas, a miúda tinha dormido umas quatro horas e já cá estava no escritório seguindo as ordens do patrão demónio. Talvez tenha sido por isso que a apaixonada tinha desistido. Era apenas mais um prego no caixão das baixas da empresa.

Nesse dia, Satanás apareceu novamente com vera Dentes de Rato como se nada fosse. E a surfista morena disse-nos que, quando entrou no gabinete, a Vera disse que a outra já não ia voltar à empresa. A surfista contou-nos uns dias mais tarde que a Vera passava o tempo a fazer-lhe questões sobre o que tinha acontecido com a outra colega, o que é que Satanás lhe dizia, ou o que é que ela tinha visto. Isto quando não a estava a ofender e a ameaçar que ela iria pelo mesmo caminho. Roberto contou-nos que a miúda tinha recusado o jantar e tinha dito que apenas queria trabalhar aqui. Coitada, mal sabia que, ao recusar, ele não iria demorar muito a mostrar-lhe quão difícil era este trabalho. Ou melhor, quão quão fácil seria fazê-la despedir-se. E infelizmente, a morena surfista nem sequer chegou ao fecho de edição. Disse-nos que não estava para isto e que não ia voltar mais.

E pronto, mais uma baixa na empresa. E o departamento de marketing estava novamente a zeros.

Um dia, a meio da tarde, Satanás disse que ia lanchar lá fora apesar de chover torrencialmente. Está toda a gente doente e eu não quero apanhar, disse a brincar. Mas era sério. O homem vivia aterrorizado em partilhar o mesmo espaço que nós. Pouca gente estava na empresa porque estava tudo com gripes e constipações. E na redacção, estava eu sozinha. À porta, havia um caixote cheio de guarda-chuvas. Três eram meus. E um deles era um velho que tinha arrumado na arrecadação e que, numa manhã de desespero, fui buscar para não chegar encharcada a Lisboa. Tinha o cabo todo pegajoso – não por estar sujo mas por ser velho – e coloquei-o lá para, num dia que viesse de carro, levar todos novamente para casa. Satanás ia a sair e disse – para mim e para Sílvia da recepção – que iria levar um chapéu emprestado e já trazia de volta. E, azar dos azares, pegou no chapéu pegajoso.

     – Que nojo – gritou, limpando as mãos bruscamente às calças de ganga – sabem de quem é este chapéu? Fiquei com a mão toda colada.

Olhou para mim. Eu acenei negativamente com a cabeça e continuei a olhar para o computador. Sílvia também disse que não sabia. E ele agarrou noutro – que também era meu e, modéstia à parte, o mais elegante de lá: cor de vinho com uns losangos em preto – e acenou com ele no ar. É meu, respondi. E ele disse: graças a Deus um chapéu apresentável, já to trago de volta.

Quando ele bateu com a porta, Sílvia olhou para mim e desatámos a rir à gargalhada.

     – O chapéu pegajoso é meu!!! – disse-lhe.      – Obrigada por o teres trazido. Este momento foi impagável – respondeu.

As três novas miúdas da moda andavam às aranhas. Nada de novo, portanto. Não faziam ideia do que fazer e todas as tentávamos ajudar, dando algumas orientações para ver se se safavam. É demasiado estúpido dizer que a revista que mais vendia em Portugal, blá, blá, blá como ele tanto gostava de dizer, tinha um segmento de moda feito por três miúdas de 21 anos em estágio e a receber 150€. Mas foi exactamente isso que aconteceu. E aquele fecho de edição foi dos mais penosos que me lembro. Para aí às duas da manhã de sexta-feira, comecei a escrever um artigo de moda que uma delas não tinha conseguido fazer e Carlota começou outro. Entrámos num daqueles momentos de transe em que ninguém podia falar connosco. Só queríamos fazer aquela merda e ir dormir. E enquanto as miúdas reuniam as imagens para, depois, eu e Carlota escrevermos os textos, dei por mim a desejar que elas se fossem embora e ele contratasse pessoas de jeito ou adultas, sei lá. Pessoas que não deixassem toda uma equipa na mão. Não as odiei, claro que não. As miúdas eram as últimas pessoas a ter culpa. Todas estas merdas eram fruto de uma má gestão por parte de Satanás. Uma gestão em que o diretor aparece às seis da tarde, perde tempo a seduzir empregadas, zanga-se com a Vera, desaparece, despede as empregadas, volta a só aparecer às seis da tarde e a três dias do fecho de edição e de tudo ter de ir para a gráfica, ele lembra-se que tem três estagiárias que nunca trabalharam na vida.

Às cinco da manhã e com toda a gente a dormir pelos cantos e sem qualquer capacidade mental para escrever, ele disse-nos para ir dormir e terminarmos no dia seguinte. O sábado custou-me ainda mais que a sexta à noite. Satanás pediu-me para fazer um artigo extra porque os de moda tinham falhado e ele teria que compensar com outro de beleza. E, enfim, que remédio. Que mais poderia eu fazer? Dizer que não? Sim, na verdade eu podia dizer que não. Podia dizer que não trabalhava mais ao fim-de-semana nem pela noite dentro. Podia dizer que isto era desumano. Que isto era o inferno. Mas não foi nada disto que eu fiz. Assenti e comecei a escrever.

Na hora de almoço, enquanto toda a gente foi para a esplanada do outro lado da rua apanhar sol e espairecer durante duas horas, eu comi sentada ao computador e fui obrigada a trabalhar ininterruptamente durante horas. Pelas nove da noite e depois de ter escrito dois artigos de moda e um de beleza extra com apenas cinco horas de sono, precisava de parar ou ia dar-me uma coisinha má. Se não fosse um ataque de pânico seria um AVC ou algo do género. Saí com Carlota e fomos até aos Armazéns do Chiado buscar qualquer coisa para jantar. Precisa de apanhar ar, de andar a pé, de esticar as pernas, as costas e os braços. Precisava, acima de tudo, de sair dali durante meia hora e já que não tinha apanhado luz solar durante o dia todo, pelo menos apanhava luz estrelar.

Ainda nem tínhamos chegado aos Armazéns e já estava Satanás a ligar-me. Apeteceu-me atirar com o telefone pelo ar, gritar, bater em alguém, dar pontapés, esmagar o telefone com os pés e saltar em cima dele.

     – Estou sim, Satanás? – disse eu, atendendo.      – Ouve lá, onde é que estás? – perguntou ele em gritos do outro lado.      – Vim com Carlota buscar jantar – respondi    – Toda a gente encomendou e está a jantar na redacção mas as meninas tinham de ir jantar fora coitadinhas, são especiais de corrida, vão jantar fora – começou ele a berrar.      – Não, na verdade…. – tentei falar mas ele não parava de gritar.      – São finas, as duas não têm trabalho, as duas podem ir jantar fora ao sábado à noite – continuava ele a gritar.      – OK VAMOS PARA AÍ – tentei gritar por cima dele e desliguei.

Meu Deus! Não  o aguentava mais. Estava possuída e farta dele. Comprámos umas sandes e voltámos para lá. Quando chegámos, estava toda a gente em silêncio a olhar para nós. Claro, devem ter ouvido os gritos e estavam a panicar por nós. Sentámo-nos mas logo ouvimos a porta dele a chiar e ele apareceu à nossa frente.

     – Venham ao meu gabinete já – disse, virando-nos costas.

E nós lá fomos em direção ao campo de concentração. Só nos faltava levar chibatadas.

Enquanto ele gritava, nos ofendia e continuava a gritar sem sequer nos dar espaço para falar, eu estava a tentar explicar que tinha passado o dia sentada ao computador sem sequer parar para almoçar e precisava obrigatoriamente de uma pausa ou ia parar ao hospital. Mas ele não nos deixava falar. Carlota, que tinha estado a apanhar sol na hora de almoço e não tinha qualquer argumento para dar, disse-me que ia simplesmente ficar calada mas para eu mostrar a minha razão. Mas eu tentava.

     – Posso dizer uma coisa? – falei mais alto para ele me poder ouvir.      – PODES IR PARA A PUTA QUE TE PARIU – gritou ele por cima de mim.

E eu simplesmente virei costas, saí do gabinete dele em fúria e comecei a tentar arrumar as minhas coisas enquanto tremia e fazia um esforço para não chorar. Marília aproximou-se de mim, agarrou-me nos braços e levou-me lá para fora para o terraço da morte que agora, à noite, estava escuro como breu e parecia ainda mais assustador. Alice aproximou-se também e tentaram consolar-me.

     – Não deites tudo a perder – disse Marília – Se te vais embora, ele ganha.      – E ele não pode ganhar, não lhe podes dar razões para dizer que abandonaste o posto de trabalho – acrescentou Alice. Nesse momento, eu já estava a chorar. Não pela ofensa em si porque as palavras dele entravam-me por ouvido e saíam por outro. Mas pela desumanidade. Por não deixar sequer uma pessoa falar. Por ser sábado à noite, ter dormido cinco horas, estar a fazer em dois dias o trabalho de um mês de um departamento que nem sequer é o meu e sobre o qual não percebo nada (eu odeio moda e tudo o que ela envolve). Toda esta pressão junta tinha-me feito ter um colapso nervoso. Apetecia-me partir tudo. Gritar. Chorar. E ir embora.

     – Vais limpar a cara, vais comer a tua sandes, vou fazer-te um copo de água com açúcar para te acalmares e vais para o teu lugar – disse Marília – e vais ignorá-lo o resto da noite. Tu safaste a moda este mês. Foste tu. E ele deve-te isso. E se ele não o vê, não lhe dês sequer o prazer de te ver chorar ou enervada.

E ela tinha razão. Aos poucos acalmei-me, fui jantar e voltei para o meu computador. Satanás volta e meia aparecia na redacção, olhava para mim mas também não conseguia dizer-me de nada. Ou não tinha sequer coragem para isso. Durante o resto da noite, falou baixinho. Agradeceu a toda a equipa o esforço extra que tínhamos tido e acrescentou que a STYLE era a revista que era também por ter uma equipa forte que vestia a camisola quando era preciso (foi das raras vezes que o vi a fazer um elogio colectivo, o senhor só podia estar para morrer).

Antes de me ir embora – já o dia estava a nascer – Satanás chamou-me e disse-me que Roberto lhe tinha dito que eu tinha ficado sozinha na redacção o dia todo a fazer os artigos extra enquanto toda a gente (ele incluído) tinha ido apanhar sol na hora de almoço. Não pensem que eu me fazia ao elogio. Ou lambia botas e me tinha oferecido para fazer o trabalho extra como a boa samaritana que (não) sou. Toda a gente estava ocupada. Marília tinha de rever todos os textos e ainda terminar uma entrevista dela. Carlota tinha todas as folhas soltas da revista para terminar – aquelas que não pertencem a ninguém em específico: cultura, livros, sugestões de lazer, etc. Alice também estava a ajudar as da moda com as legendas da produção fotográfica. Eu – que tinha terminado todos os meus artigos a tempo e horas – é que fiquei, por isso, subitamente livre e foi em cima de mim que calhou este trabalho extra.

     – Desculpa-me pelo que te disse – começou ele – não percebi que estavas a trabalhar há nove horas seguidas e que precisavas de fazer uma pausa.      – Eu tentei dizer-lhe isso… – respondi, enquanto vestia o casaco.      – Eu sei, foi falha minha. Fiquei tão enervado que não te deixei falar – disse – para a próxima diz-me que precisas de uma pausa e eu já sei.      – Ok.

Estava de carro, por isso, pensei em levar todos os meus guarda-chuvas para casa que, no momento, já eram quatro. Já praticamente toda a gente se tinha ido embora. Só lá estavam as miúdas do design a terminar de gravar os PDF’s para irem para a gráfica. Comecei a tirar os guarda-chuvas do caixote e ele interceptou-me.

     – Sabes de quem é este guarda-chuva? – perguntou, apontando para o meu pegajoso.     – Não – respondi – vou levar estes três que são meus e preciso para o caso de chover na próxima semana.     – Então leva este – disse, pegando no pegajoso com a ponta dos dedos e fazendo cara de nojo – e mete-o no lixo. Não me interessa de quem é. Que pessoa porca!

Eu peguei em todos e desejei-lhe boa noite. Ou bom dia.

Quando saí porta fora, não consegui evitar uma gargalhada silenciosa, coloquei os quatro debaixo do braço e fui para casa.

Se um dia me voltar a ofender, talvez lhe possa bater na cabeça com o guarda-chuva pegajoso e fazê-lo morrer de nojo.

26 mil Horas Sem Matar o Patrão é uma crónica life-fiction que retrata o dia-a-dia numa revista. Toda e qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. Todas as segundas-feiras irá sair um novo capítulo.

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