Um dia de manhã a Maria não apareceu. Caso não se recordem, a Maria era a rapariga da recepção. Por uma vez na vida, demos valor ao trabalho dela porque tivemos de nos revezar para abrir a porta e atender os telefones. E, acreditem, era o dia todo nisto: correio, estafetas e mais estafetas e mil e uma chamadas do telefone central que nunca parava de tocar. A Maria estava com uma crise de cólicas renais e não se podia mexer. Até aqui tudo bem. Mas no dia seguinte lá estava ela de manhã: pálida, com olheiras até ao queixo e a andar agarrada à barriga. Acabou por nos contar que, a meio da tarde, tinha recebido uma mensagem do Satanás a ameaçar que se não aparecesse no dia seguinte estava despedida por justa causa. A rapariga lá foi… Dava dó olhar para ela. Mal se mexia, arrastava-se pelo corredor sempre que tinha de abrir a porta e o calor insuportável que se instalava a partir da hora de almoço não tornava o ambiente sequer aprazível. Tentámos ajudá-la, levantámo-nos nós para abrir a porta e fizemos o melhor que podíamos para que, pelo menos, ela estivesse o mais confortável possível. Mas a meio da tarde – ainda o Satanás não tinha aparecido – a Maria começou a sentir-se mal e Irina foi direta ao assunto e chamou o INEM. Foi todo um aparato no edifício com os paramédicos a subir pelo elevador com a maca, a entrarem pela redacção e a tentarem acalmar uma Maria contorcida em lágrimas enquanto tentavam perceber o que ela tinha. Todos nós ficámos ali sem saber muito bem o que fazer mas a rezar contra Satanás porque, afinal de contas, a culpa acabava por ser dele – por ser um ser humano execrável e sem alma. E Maria lá foi para o hospital. Irina contactou a mãe dela e o resto da tarde passou de forma sorumbática. Quando Satanás chegou, Irina contou-lhe o que tinha acontecido mas ele não mostrou sequer qualquer tipo de empatia. Encolheu os ombros e fechou-se no gabinete.
Maria colocou baixa no dia seguinte e nunca mais apareceu. Entregou a sua carta de demissão e, talvez para evitar mais uma viagem ao tribunal (e Maria tinha todas as razões para isso), Satanás assinou lá o que tinha de assinar para ela ter acesso ao subsídio de desemprego. Mais um prego no nosso caixão. Farewell, Maria.
Na verdade, isto não tinha sido um caso isolado. Reclamávamos há meses do calor insuportável que se instalava assim que o sol ficava virado para a redação (a partir da hora de almoço) porque o ar condicionado estava avariado e Satanás não mandava ninguém arranjar. Há umas semanas, uma miúda da moda tinha-se ido embora com desmaios e a sentir-se mal devido ao calor. Caso já não se lembrem, a redacção ficava numa espécie de aquário com paredes de vidro de um lado. As nossas mesas e as das miúdas da moda ficavam exactamente nas paredes de vidro e éramos basicamente nós que mais sofríamos com o calor. Eu tinha uma ventoinha na minha mesa (que tinha trazido de casa) e que ligava continuamente durante a tarde. Preferia uma gripe a um pico de calor.
Nesta altura, aconteceu outra situação que aumentou as nossas queixas e frustrações face à qualidade miserável (e de certa forma perigosa) do nosso espaço de trabalho: sem cozinha, sem espaço de refeições, um microondas que, volta e meia, ele se lembrava de reclamar porque os cheiros o incomodavam (coitado, quando aparecia às seis da tarde ficava enjoado com o cheiro dos nossos almoços……), sem ar condicionado, sem estores nas paredes de vidro e sem sequer qualquer tipo de conforto para quem fazia noitadas e chegava a trabalhar até às sete de manhã. Um dia informaram-nos que iria haver um simulacro de incêndio no edifício todo (onde estavam instaladas dezenas de empresas) para averiguar todas as questões de segurança. Irina tinha uma plaquinha onde escreveu o nome da revista – como ditavam as regras de segurança – para, já todos na rua, podermos encontrar a nossa empresa e ver se faltava algum colega (isto em caso de incêndio real, claro). Eram umas onze e meia da manhã quando começámos a ouvir imenso barulho nos corredores mas, até ver, o alarme ainda não tinha tocado. O barulho era cada vez mais alto e fomos à porta ver o que se passava. Pessoas de uma outra empresa do nosso piso disseram que os alarmes de incêndio já tinham tocado. O nosso nem se fez ouvir. Como poderíamos estar seguros num dos pisos altos de um edifício onde, na nossa empresa, em caso de perigo, nem sequer o alarme funcionava? Lá fomos todos em filinha pirilau a descer pelas escadas de emergência com mais umas dezenas (ou até centenas) de pessoas. Fomos a última empresa a chegar à rua. Se isto fosse um incêndio real eu já cá não estava para contar a história. Estaria, provavelmente, na janela do aquário a ver a minha vida passar-me à frente dos olhos. Se calhar quando estivesse no limbo, lá na barquinha em direção ao céu, pudesse afogar Satanás a caminho do inferno.
Claro que isto levou a mais uma série de reclamações. Era o que mais fazíamos ali. Reclamações e mais reclamações e mais reclamações. Que caiam em saco roto.
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No final de Setembro recebemos a informação de que iríamos mudar de escritório. Oi? Como? Quando? Porquê? A sério? Esta notícia para mim chegou em jeito de festa e senti uma pequena empatia para com Satanás. Mas elas – as mais antigas da casa – disseram-me que já seria a terceira vez que se mudavam. Porque razão uma empresa se mudava tantas vezes? Não dava uma trabalheira estar constantemente a mudar de instalações?
Ainda assim, ficámos todos em êxtase. Eu andava a dizer a toda a gente que, afinal, ele dava ouvidos às nossas reclamações. Afinal, preocupava-se com as nossas condições de trabalho que não eram as melhores nem as mais seguras. Mas não. Afinal, ele só devia imenso dinheiro ao condomínio do edifício e tinha recebido um ultimato. Era provavelmente esta a razão de todas as mudanças anteriores. Eu estava de férias marcadas e já nem queria saber disto para nada. Só queria mesmo as minhas duas semaninhas fora dali para, por um momento, esquecer-me da existência desta gente na minha vida. No dia antes de me mandar daqui para fora, ele chamou-me ao seu gabinete e – entre uma fumarada de tabaco que me deixou mais uma vez enjoada – informou com jeitinho (e no meio de vários elogios ao meu trabalho desse mês) que não as podia tirar porque iria precisar de toda a gente para ajudar nas mudanças. Nem estava a acreditar no que estava a ouvir. Ele não iria sequer contratar uma empresa de mudanças? Como não? Era todo um escritório… Mas nem tive tempo para pensar muito nisto. Para minha sorte, já tinha bilhete de avião comprado para Barcelona e informei-o disto. Se ele não queria que eu tirasse as férias – que já tinham sido aprovadas por ele – teria de me dar o dinheiro do bilhete. Tio Patinhas como ele era, sabia que nem iria sequer conceber esta ideia. Dito e feito. Pediu-me então para tirar de férias só os dias da viagem (que era apenas cinco dias) e para regressar depois para ajudar na instalação do novo escritório. Estava safa das mudanças.
E lá fui eu para Barcelona curtir o meu amor.
Quando regressei, fui directa para a nova morada. Adios confusão da Avenida da Liberdade, olá Chiado. Venha o Diabo e escolha. Ou o Satanás…
A minha primeira impressão, quando lá entrei, foi que tínhamos saído de um aquário e entrado num bunker. Se nos queixávamos do calor e da luz das paredes de janelas sem estores, parecia que Satanás se tinha esforçado para encontrar o oposto de tudo aquilo que reclamávamos. Quase como uma vingança pessoal contra nós todas. O novo escritório era escuro e bafiento. A questão não era a vingança, claro. Era o preço. Um buraco no meio do Chiado era, pelos vistos, mais barato que um aquário sem ar condicionado na Av. da Liberdade. A redacção passou a estar numa espécie de open space no meio do buraco que era tudo menos “open” dado que não tinha qualquer luz natural. A única luz que vinha era dos escritórios laterais que, sim, tinham janelas. Um deles era o da Clarice (o seu mausoléu tinha sido transferido para a nova morada o que dava sinais de que, mais cedo ou mais tarde, o raio da mulher iria voltar), o outro da Vera dentes de Rato e o outro do Satanás. Estes escritórios individuais tinham um vidro para a redacção que – para não podermos ver lá para dentro – tinha os estores sempre fechados. Em conclusão: nós não tínhamos qualquer luz natural a entrar. Comecei a imaginar a minha vida oito (nove, dez, onze, quinze, directas…) horas num buraco com luz artificial em cima de mim e pensei que nos tinha saído pior a emenda que o soneto.
– Safaste-te das mudanças – disse-me Carlota quando lá cheguei, depois da minha semana em Barcelona. – O que é que tiveram de fazer, afinal? – questionei, rindo-me da desgraça alheia e enquanto me sentava no lugar que, percebi, era o meu porque tinha todas as minhas coisas atafulhadas num monte. – Basicamente… tudo – disse Alice que tinha uma tala num dedo da mão – e eu estraguei o meu dedo a desmontar uma mesa. – Mas ele não contratou ninguém para isso? – perguntei incrédula – tipo… uma empresa de mudanças com homens fortes, sei lá… – Não – responderam em coro.
E fiquei a saber que, na minha ausência, elas (juntamente com as do design, da moda e do marketing) tinham desmontado as mesas, embalado todos os armários com aquele papel celofane próprio para não se abrirem durante o transporte, tinham posto tudo nos elevadores para, lá em baixo, ser colocado numa carrinha que ele lá deve ter desencantado. Comecei a pensar em tudo… impressoras, mesas, cadeiras, computadores, material de escritório, centenas de revistas, os milhentos sacos que havia no gabinete de Satanás e Clarice, frigorifico, microondas… tudo! Elas tinham transportado tudo. E depois, tinham voltado a transportar tudo elevadores acima para o novo escritório, desembalado, montado e organizado. Pagamentos pelo trabalho extra? Claro que não. Fiz questão de agradecer aos anjos pelas férias que marquei quando ainda nem sequer sabia desta mudança.
No novo escritório, estávamos mais ou menos dispostos da mesma forma. Alice passou para o meu lado esquerdo e, à direita, estava Carlota. Marília ficou, como antigamente, de frente para nós todas. À nossa frente encontrava-se a zona das miúdas da moda. O showroom delas era minúsculo, cheirava a mofo e comecei a imaginar que as marcas nem iriam imaginar onde as suas roupas iriam estar guardadas. O design passou para uma outra sala (deixavam de estar connosco na redacção) e a única mudança foi que as raparigas do marketing (havia duas novas, agora que Paula se tinha ido embora) estavam agora num gabinete ao nosso lado e, pela primeira vez, iriam poder conviver mais connosco. Ao lado do gabinete delas encontrava-se uma cozinha – yey nem queria acreditar – que era minúscula mas, ainda assim, era uma cozinha com uma mesa para duas pessoas, um frigorifico, um microondas e um lava-louças. Tinha uma porta para um terraço – pelo menos, poderíamos apanhar sol na hora de almoço já que no resto do tempo iríamos estar enfiadas num buraco sem luz natural – que não tinha sequer uma grade ou uma parede. Era um terraço que simplesmente acabava para o nada… como um precipício. Mas quem é que alugava um escritório no 10º andar com um terraço sem qualquer tipo de proteção? Começámos a chamá-lo de terraço da morte e a gozar que, em fúria, poderíamos atirar Satanás para o precipício. Tornou-se assim o nosso escape fantasioso do novo escritório.
Este sítio era horroroso, escuro, triste, deprimente, feio, todo em madeira, com um tapete nojento que tapava o chão e que cheirava a podre (Satanás garantiu que o ia mandar limpar). Na minha primeira tarde na nova morada comecei a olhar à minha volta. Atrás das nossas mesas tínhamos uma parede de madeira que tornava o espaço ainda mais sorumbático. Decidi pegar num caixote que estava cheio de capas de revistas antigas e comecei a forrar a parede com capas para, sei lá, dar um ar mais “revista de moda” ao espaço. Quando terminei, achei que tinha melhor aspecto.
Durante a minha inspeção ao novo espaço, descobri um armário onde tinham sido arrumadas várias caixas com papéis, revistas antigas e – eis o que descobri! – umas revistas inglesas que eram literalmente uma cópia da nossa. Comecei a folheá-las. Era tudo igual: o design, os layouts, o esquema dos temas, o tipo de letra, tudo!!!! Era como estar a ler a revista STYLE em inglês. Mostrei a Alice e a Carlota que, afinal, já sabiam e me aconselharam a não falar muito sobre este assunto – principalmente com a chiba da casa: a Marlene. Incrível como a revista original que esta gente se gabava de ter criado era, afinal, uma cópia de uma outra inglesa e que, pelos vistos, já não se vendia.
Alguns dias depois de estarmos instalados no novo escritório, Roberto voltou do Porto para se mudar de malas e bagagens novamente para Lisboa. E isto coincidiu com mais um daqueles momentos deveras divertido com egos à mistura. Roberto voltou do Porto para dirigir o departamento comercial e uma das suas exigências era ter um gabinete para ele no novo escritório. Disse-nos que o Rui da contabilidade lhe tinha dito de antemão que não havia escritórios livres e ele impôs logo essa condição ao Satanás. Só havia assim uma solução: ou Roberto ficava com o escritório de Clarice (que seria o mais lógico dado que ela estava desaparecida em combate) ou com o de Vera dentes de rato. Claro, excluindo a hipótese das miúdas do marketing irem trabalhar para o vão de escada que, na verdade, não me iria surpreender. Mas a verdade era que Clarice continuava a ser um mito urbano aqui, uma espécie de Santa Clarice com o seu mausoléu intocável, os seus saquinhos aos montes, o seu tapete de pelo enrolado no meio do chão e a suas traquitanas espalhadas.
Satanás entretanto chegou pela primeira vez ao novo escritório, qual general a chegar ao campo de batalha. Entrou de sorriso pepsodent a olhar de cima para todos nós e seguiu direito ao seu novo gabinete. Uma das coisas que me preocupava então era que o seu gabinete ficava atrás de nós, ou seja, sempre que ele saísse ficava imediatamente de frente para os nossos computadores e poderia ver o que estávamos fazer. Não é que isso fosse relevante mas era um pouco invasivo, se é que me entendem.
Ouvimos gritos, ouvimos um “nããão” mimado e ouvimos a porta a bater, seguido do andar arrastado da Vera dentes de rato. Agarrou na sua mala, bateu com a porta do escritório que – percebemos imediatamente – não iria ser mais dela e foi-se embora. Roberto instalou-se no gabinete dela, abriu os estores para poder estar em contacto connosco via vidro e – disse-nos então – a miss dentes de rato iria passar para o gabinete das miúdas do marketing. Elas nem estavam a imaginar a peça que lhes tinha calhado.
Por outro lado, percebemos que a porta do gabinete do Satanás rangia, o que fazia com que soubéssemos – mesmo de costas – sempre que ele a abria. No meio do caos, havia um raio de sol e de liberdade.
Depois da discussão mimada com a dentes de rato que toda a gente teve a bela oportunidade de ouvir, Satanás saiu de cigarro na boca – oh não, aqui, pelos vistos, ele fumava no escritório todo sem pudores – olhou para nós e, com cara de nojo, levantou os olhos para a parede atrás de nós que eu tinha forrado com capas de revistas.
– Mas que merda é esta? Isto não é o circo – disse, expirando para cima de nós – quando chegar amanhã não quero ver estas colagenzinhas na parede.
E saiu porta fora. Sem um adeus, até amanhã. Nada de novo. Apenas a sua pouca educação – a sua imagem de marca.
Passei o resto da tarde – até me ir embora – a arrancar todas as capas de revista da parede e a voltar a fechá-las num caixote.
Era mesmo isto que ele queria: um espaço de trabalho deprimente, feio e escuro.
Como ele.
26 mil Horas Sem Matar o Patrão é uma crónica life-fiction que retrata o dia-a-dia numa revista. Toda e qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. Todas as segundas-feiras irá sair um novo capítulo.
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