Foda-se. Foi exactamente isso que pensei quando, numa quarta-feira às quatro em ponto da tarde, entrei nos escritórios daquela que, viria a saber depois, era, afinal, uma revista feminina portuguesa até bem cotada. Não em bolsa mas em números. Tudo se resume aos números e, atenção, as redes sociais ainda nem dominavam a nossa realidade porque estávamos em 2010. Eu que nunca tinha lido uma revista feminina na vida, acabei por me rir para mim própria pelos acasos da vida. Estacionei o carro a meio da avenida da Liberdade e, depois de passar uns bons 10 minutos de cabeça no ar a ler os letreiros das portas, lá encontrei o número 320. Respirei fundo – nem sabia bem o que raio estava ali a fazer – e entrei. Apanhei o elevador para o quinto piso.
Os escritórios eram megalómanos. Brancos, com paredes de vidro do chão até ao tecto. Branco por todo o lado. Nunca tinha visto tanto branco na vida. Sentia-me suja, ali parada de pé num hall de entrada que deveria ter, provavelmente, o tamanho do meu apartamento todo. A recepcionista sorriu, quando me aproximei, e indicou-me um sala ao fundo do corredor. Ao caminhar, atrás dela, tentei olhar para todas as portas para ter algum vislumbre das pessoas que lá trabalhavam. As portas eram de vidro – não havia nenhuma privacidade naquela empresa? – e, como se não fosse mais excêntrico, aquela que deveria ser a parede do corredor, também era de vidro. De modo que parecia que todos estavam num aquário. Sentia-me como se estivesse no jardim zoológico e, enquanto andava, olhava para todas as gaiolas a observar o comportamento dos restantes trabalhadores. Mas a verdade é que não vi ninguém. Vi gabinetes de roupas e mais roupas. Outros com mesas desorganizadas cheias de bugigangas, sacos espalhados pelo chão, computadores abertos e fechados, sapatos e mais trapos numa confusão que deixou o meu OCD nos picos. Montes e montinhos de revistas estavam espalhadas pelo chão de todas as salas. Centenas de papéis colados nas paredes, capas de revistas que nunca tinha visto na vida e, achei irónico, capas de outras revistas a fazer pandã. Parecia um escritório fantasma – ouvia vozes por todo o lado mas não via ninguém. Reparei que dois gabinetes, também de vidro a meio do corredor, tinham os estores corridos para não se poder ver lá para dentro. Deduzi que fossem os gabinetes dos directores – os reis da selva, da cocada preta, da república das bananas. Tenho de parar de pensar estas coisas, disse para mim mesma, concentra-te. O corredor tinha, provavelmente, uns 10 metros. Nunca mais acabava, ladeado por salas dos dois lados e, no fim, terminava no que, consegui entender, era um espaço aberto. Antes de entrar no gabinete que a recepcionista me indicou, torci-me toda para espreitar lá para o fundo. Não via ninguém mas continuava a ouvir vozes de raparigas a falar e a rir de forma estridente. Bom ambiente de trabalho, pensei.
Sentei-me num sofá – branco, já não aguentava tanto branco – ao lado de uma rapariga de vestido e cabelos ondulados compridos que me acenou e sorriu.
– Estás para a entrevista – questionou-me?
– Sim, também estou – respondi, olhando-a de cima abaixo, discretamente. Tinha um vestido azul escuro justo, um casaco comprido de um tecido tipo seda e umas sandálias de salto alto.
– Eu adoro esta revista – disse-me, fechando a que estava a ler e colocando-a em cima das pernas, virada para baixo – já ando a tentar uma entrevista há meses. O meu sonho sempre foi trabalhar aqui mas nunca consegui. E tu?
– Bem – hesitei, olhando à minha volta, tentando de facto perceber onde é que estava metida – sim, eu também adoro. Venho à entrevista para jornalista.
– Uffffff – gritou ela, dando uma risadinha – parece que estamos a concorrer uma com a outra – sorri-lhe e ela voltou a concentrar-se na revista que estava a ler.
Onde é que eu estava? A minha colega do lado estava de vestido e saltos altos e eu tinha umas calças de ganga rasgadas e um top às riscas. Comecei a remexer na minha mala e encontrei um gancho com uma grande flor da minha prima mais nova. Achei que poderia funcionar. Apanhei o cabelo num rabo-de-cavalo e coloquei a flor a fazer de elástico. Sim, tinha de servir. Ao lado da miss vestido azul eu parecia um elefante numa loja de cristais. Estava de ténis All Star – bastante feminina para a revista feminina das femininas. Na verdade, não sabia para o que tinha vindo. E isto não sou eu a tentar dar uma justificação para o quão desenquadrada estava daquele habitat. Mas depois de meses a arrastar-me por Lisboa, sem saber ao certo o que fazer, a minha mãe tinha decidido fazer uma intervenção. Chamou-me para lanchar e, afinal, também lá estava uma das suas amigas que havia sido minha professora na escola. Não lanchei, na verdade, porque não havia lanche nenhum. Bombardearam-me de perguntas sobre o que pensava fazer, agora que me tinha despedido do meu emprego e tinha decidido que, afinal, não queria fazer nada daquilo para que tinha estudado nos últimos seis anos. Nada de novo na nossa realidade, portanto. Vamos ser honestos, ninguém me tinha avisado, aos 18 anos, que o meu sonho de defender e trabalhar com mulheres em risco era, afinal, uma palhaçada porque em Portugal simplesmente não há uma política social. E não me interpretem mal (nem odeiem), eu sou demasiado coninhas para ir lá para fora trabalhar nas fronteiras, o que, em tempos, foi realmente algo que ponderei fazer. Mas depois pensava no que ia ter que comer, onde ia ter que dormir, no calor que ia ter que passar, os imprevistos, os riscos, o ambiente e a minha ansiedade começava a disparar. Acabei por concluir que sou efectivamente demasiado cobarde para aquilo que (pensava eu) sonhava fazer. É como aquelas pessoas que crescem a ver o CSI e decidem que querem trabalhar com crimes mas depois veem um morto e já estão a desmaiar. A nossa imaginação e a realidade são diferentes e deviam, de facto, preparar-nos para isto na escola. Estava tão desesperada, ou desiludida se é para ser mesmo honesta, que simplesmente tinha percebido, uma licenciatura e um mestrado depois, que a política social não era para mim. Pelo menos, não nos moldes que tinha imaginado. Tinha de recorrer ao plano B. Havia uma outra coisa que sempre tinha feito nos entretantos: escrever. Contos, acima de tudo. Não publicados, obviamente, porque era uma coisa minha. E não para ser lida por terceiros.
– O que é que queres fazer agora? – perguntou-me a dona Irene, a minha antiga professora, enquanto a minha mãe olhava para mim, de braços cruzados, com ar desconfiado. Lá acabou por nos servir chá. Pedi a minha caneca dos gatos porque, sei lá, sempre que vou a casa da minha mãe, ainda hoje, sinto-me novamente com 12 anos. E ela até me descasca e parte a fruta.
– Não sei – respondi – estou a tentar perceber isso, não é?
– O que é que tens feito? – questionou – quero dizer, o que é que tens feito no teu dia-a-dia.
– Sei lá o que é que tenho feito – respondi, revirando os olhos – faço coisas, estou com pessoas. E tenho escrito – disse. Também não sabia que mais é que podia fazer e não tinha jeito para nenhuma arte ou ofício. Escrever era a única coisa que sabia fazer. Ou pensava saber. E entretinha-me enquanto não decidia o que fazer da vida.
– Foi o que me pareceu – respondeu, sorrindo – sei de uma revista que estão a precisar de uma jornalista.
– Não sou jornalista – interrompi.
– Nenhum jornalista é jornalista – ironizou a minha mãe – eles tiram economia e direito e relações internacionais ou que raio mais eles tiram e depois todos acabam como jornalistas.
– Sim mãe – revirei os olhos.
– Eles precisam de alguém que saiba escrever – disse a dona Irene, apaziguando os ânimos – e isso é o que tu sabes fazer. Pode ser bom para estares ocupada enquanto não decides o que queres.
E deu-me um papel com um email para onde eu deveria enviar alguns dos meus textos ao cuidado do Dr. Satanás (claro que ele não se chamava assim mas era assim que viria a saber que era tratado). Não me disse que revista era. Vai ser mais interessante quando lá chegares, afirmou. E depois de pensar que, afinal, não tinha nada a perder e trabalhar numa revista poderia ser, de facto, interessante, assim o fiz. Uma semana depois tinha sido chamada a uma entrevista no número 320 da avenida da Liberdade. E, voilá, era onde estava agora mesmo. No jardim Zoológico chamado STYLE.
A dona Irene e a minha mãe sabiam que jamais teria enviado os textos se soubesse para o que era. E agora, eu e a miss vestido, ao meu lado, estávamos sentadas numa sala branca, com sofás brancos, um tapete de pelo branco e uma mesa branca com flores… brancas. À espera de saber o veredicto.
E continuámos à espera. Esperámos tanto que, a dada altura, ela já tinha perdido toda a sua compostura alinhada e eu estava praticamente deitada no sofá. Já tinha folheado todas as revistas e decidido que as odiava. Odiava tudo aquilo que elas representavam: um jornalismo barato cheio de ideias bacocas sobre relações amorosas difíceis, artigos de sexo à la 50 Sombras de Grey, moda para quem recebe um ordenado de quatro dígitos, beleza e, claro, homens. Um mundo cor-de-rosa do qual eu não fazia parte. Nem queria. A minha literatura semanal consistia em tudo menos revistas femininas. E não lia uma desde os tempos da escola secundaria em que fazia os testes de amor da revista Ragazza e recortava os posters dos The Moffatts das revistas Bravo.
Era 18h30 em ponto quando a cabeça da recepcionista apareceu com um sorriso envergonhado – porque já lhe tínhamos ido perguntar vinte vezes se ia haver entrevista ou não, se podíamos ir comprar qualquer coisa para comer ao café lá abaixo e se podíamos ir à casa de banho – para nos avisar que o Dr. Satanás tinha chegado e as entrevistas iriam começar não tarda nada. Graças a Deus, estava quase a explodir e a partir os vidros todos ao pontapé.
—
Estava sentada num dos gabinetes de vidro que tinha os estores corridos para baixo. A secretaria dele era de vidro e tinha o tamanho da minha cama. Perguntei-me se ele a usava (também) para esse propósito. Não para dormir, digamos. Vocês sabem… sexo no escritório, coisas malucas que vemos nos filmes. Estava de novo com vontade de rir. Quanta estupidez me passava pela cabeça durante o dia. Tinha de me concentrar. Observei a sala. Tinha uma capa de uma revista em tamanho quase humano colada numa das paredes. A modelo tinha cabelos cor-de-laranja e era esquelética. Fiquei um tempo a olhar para os temas que essa revista anunciava: Como vestir do XS ao XL; Sexo no verão pode passar a relação?; 25 cortes de cabelo para esta estação; Menos 6Kg com a dieta certa… Não me imaginava, de todo, a escrever aquele tipo de coisas idiotas mas, pensando bem, era melhor escrever coisas idiotas e ser paga para isso do que estar em casa a escrever igualmente coisas idiotas a custo zero. Continuei a olhar em volta: dezenas e dezenas de sacos e caixotes de papelão num dos cantos da sala. Conseguia ler, nos sacos, marcas como Chanel, Givenchy, Estée Lauder, Yves Saint Laurent e Lancôme. Marcas que, na verdade, só conhecia de ouvido mas onde nunca tinha sequer posto os olhos em cima. Estavam, contei-os a todos, 12 perfumes em cima da secretaria. Este homem só podia cheirar bem. Ou então cheirava mesmo muito mal. E não tive tempo de observar mais nada porque ele, entretanto, chegou, entrou no gabinete, tossiu e cumprimentou-me.
Imaginava que o diretor seria, sei lá, não me interpretem mal, gay. Mas pelos vistos não. Vestia um blusão de cabedal e umas calças de ganga Levi’s. Foi isto que consegui ver no meio segundo em que me levantei, lhe dei um aperto de mão e me voltei a sentar. Era um homem alto – devia medir uns dois metros – delgado e de cabelos grisalhos. Não era daqueles homens entroncados que vestem blusões de cabedal e ficamos logo com a ideia que levantam pesos no ginásio quatro vezes por semana e conduzem uma mota. Ele era, provavelmente, o tipo de homem que veste um blusão de cabedal porque quer parecer mais novo do que realmente é e, pela mala de pele que tinha ao ombro, pelo perfume caro a que cheirava, os sapatos de pele de cobra que tinha calçados, percebi logo que devia conduzir um BMW de bancos de pele e o mais perto que esteve de uma mota foi no parque de estacionamento do hotel Ritz quando vai beber um Martini ao final do dia. Será que o Martini é a bebida dos ricos? Sei lá…
Ficou calado durante imenso tempo, quase como se eu não estivesse ali. Ligou o computador, tirou umas pastas de dentro da mala, acendeu um cigarro e ficou a olhar para o ecrã com o olhar vago, como se pensasse enquanto fumava. Fiquei sem saber o que fazer. Que situação mais desconfortável. Dizia-lhe qualquer coisa? Falava eu primeiro? Dizia-lhe olá? Partia a mesa para ele ver que eu estava ali? E o cheiro a tabaco em cima de mim estava a deixar-me agoniada. Mexi-me na cadeira e ele, de repente, focou os olhos para mim como se me visse pela primeira vez e levantou as sobrancelhas. Seria retardado? Ou ignorar-me deliberadamente fazia parte de um qualquer esquema manhoso para me deixar nervosa? Ou queria simplesmente marcar uma posição?, qualquer que ela fosse.
– Hmmm – disse, apagando o cigarro – gostei dos teus textos. Fala-me um pouco de ti.
– Bem – comecei, sem saber muito bem o que dizer – estudei políticas sociais, achava que era nisso que queria trabalhar. Afinal, não. Então – hesitei – pronto, eu escrevo, é a única coisa que sei fazer. Não sou daquelas pessoas boas a desporto porque nunca fui – e acabei de perceber que também não era boa em entrevistas – mas também não era nada boa a artes, sou péssima com desenhos – ele tossiu e acendeu novamente um cigarro – também nunca fui muito social, então a escrita foi sempre um escape, o que me fazia feliz, sabe…
– Sim, tens jeito – interrompeu-me ele, provavelmente numa forma piedosa de me fazer calar – tens uma escrita fluída, divertida de se ler. Achei a tua escrita pessoal, como se falasses directamente ao leitor e eu gosto disso.
– Ah – sorri porque, de facto, não esperava tal coisa – obrigada.
– Conheces a STYLE? – perguntou-me.
– Claro – menti.
– Leste este número? – questionou-me.
– Sim, gostei muito – menti, novamente. E daqui a nada iria enterrar-me.
– Esta é o tipo de mudanças que queremos fazer – disse, enquanto atirava com o fumo do cigarro para o lado da janela. Só que estava fechada e ficou ali a pairar por cima das nossas cabeças, entranhando-se no meu nariz e queimando-me os pulmões, eventualmente tirando-me um ou dois anos de vida – queremos chegar mais perto da leitora, queremos que ela sinta que escrevemos directamente para ela. Queremos começar a focar temas mais sérios. Não que a moda ou a beleza não sejam sérias, a moda e a beleza são sérias. São impérios que movem milhões e milhões todos os anos. E empregam outros milhões de pessoas em todo o mundo. Até o coitadinho na fábrica na Índia. Todos nós fazemos parte deste império. Somos apenas uma fatia do bolo. Mas queremos que essa fatia seja mais rica. Queremos que a leitora STYLE seja uma leitora que se veste bem, mas que também procura estar bem. Queremos que seja uma leitora culta, trabalhadora, moderna. Que se preocupa com a sua beleza mas também com questões fundamentais como aborto, adopção, feminismo, empowerment…
E continuou num monólogo que durou uma hora. Falou-me de como montou a empresa, dos valores que procurava nos trabalhadores – disse-me tantas vezes a expressão vestir a camisola que já não sabia se era realmente literal e havia, de facto, uma camisola que todos os trabalhadores vestiam. Tipo uma farda. Apeteceu-me rir enquanto pensava nisto. Mantive-me séria. Falou-me de como se montava uma edição de cada revista, da concorrência, da imprensa em Portugal onde todas as revistas eram uma merda menos a dele. E eu fiquei uma hora sentada, muito direita, a ouvi-lo e a tentar não bocejar. Nem tossir porque fumou uns dez cigarros.
– Tens problemas com horários de trabalho? – perguntou.
– Não – respondi.
– Aqui entramos às 9h e saímos às 18h mas, nos fechos de edição, por vezes tem de se trabalhar até mais tarde. Tens problemas com isso? – perguntou.
– Não – respondi.
– Desculpa a pergunta mas tenho de a fazer: tens filhos? – perguntou.
– Hmmm – hesitei – não…
– É só uma formalidade– disse – evitamos contratar mulheres com filhos.
– Ah – pensava que isso era crime laboral mas mantive-me calada – não tenho filhos, não – respondi.
– Tens que idade mesmo? – perguntou.
– 27 anos – disse.
– É uma boa idade – mandou uma gargalhada – e não tenhas filhos tão cedo.
Fiquei calada. Mais porque não sabia o que responder a uma afirmação tão estúpida e sexista vinda de um homem que geria uma revista feminina e devia, pela lógica, ser pró-mulher. Ele levantou-se e percebi que a entrevista tinha acabado. Levantei-me também, peguei na mala e segui atrás dele. Quando chegou à porta, parou, virou-se para trás e perguntou-me.
– Porque decidiste não trabalhar mais em políticas sociais?
– Não estava feliz – respondi. Era o mais honesta que estava a ser naquela entrevista toda.
– E achas que aqui serias feliz? – questionou.
– Não sei – disse – mas a única coisa que neste momento me faz feliz é escrever.
Ele ficou calado a olhar para mim, pensativo, enquanto batia no maço de cigarros, preparando-se para se matar um pouco mais.
– Fazemos um contrato de seis meses – disse – se no fim ainda te sentires feliz, ficas.
– Fico? – questionei. Não estava a entender…
– Gostei de ti – disse, sorrindo – acho que és a pessoa certa. Tens um dom, acredita. Não está é bem explorado. Quero ensinar-te.
– Acha que devia fazer um curso de jornalismo ou assim? – questionei com zero vontade em gastar dinheiro em mais cursos.
– Não – mandou uma gargalhada – esses cursos são todos uma merda e não te vão ensinar nada. Se queres ler a história do jornalismo, posso indicar-te uns quantos livros. Estou a dizer-te que acredito em ti, quero ensinar-te e quero que trabalhes connosco na STYLE – respondeu – nos últimos meses, já entrevistei várias dezenas de jornalistas e não gostei de nenhuma. Algumas já vêm de outras revistas e vêm com hábitos de trabalho diferentes dos nossos, outras simplesmente não sabem escrever ou vêm para aqui deslumbradas com a moda e acham que isto é a Vogue ou uma merda do género. A STYLE é uma revista diferente de todas as outras. E precisa de uma pessoa diferente.
– Oh… – não sabia o que dizer porque, na verdade, não pensava ficar. A minha ideia era sair dali confiante que tinha feito o favor à minha mãe, tinha vindo e agora já não me podia chatear de que não tinha tentado.
– Começas dia 1 às 9h ok? – disse – vou cá estar para te receber, apresentar-te à equipa e mostrar-te como trabalhamos. Traz os teus documentos para fazermos o contrato.
Abriu a porta e saiu. Segui atrás dele pelo corredor. As vozes e risos que ouvi quando cheguei estavam longe. Não se via nem ouvia vivalma. Agora, sim, parecia um escritório fantasma. Chegámos ao hall de entrada e a recepcionista fez-me um sorriso triste – eram quase oito da noite, já devia estar fora do seu horário de trabalho. Culpa minha e da miss vestido que iria ser entrevistada agora e, coitada, não sabia mas não ia ficar. Sorri-lhe de volta. O Dr. Satanás, agora sem o casaco de cabedal vestido e sim uma camisa verde tropa, abriu a porta.
– Vemo-nos dia 1 – disse-me, apertando-me a mão – bem-vinda à STYLE.
Chamei o elevador e desci. Lá fora, vi um grupo de raparigas a fumar à porta do prédio. Quando passei por elas, chamaram-me. Olharam todas para cima – eu olhei também mas não vi ninguém – e aproximaram-se de mim.
– Vieste à entrevista? – perguntou uma delas.
– Sim – respondi.
– E vais ficar? – perguntou outra.
– Pelos vistos sim – disse – começo dia 1.
Riram-se todas. Olharam de novo para cima. Estariam a olhar para as janelas? Olhei também. Continuei sem ver ninguém.
– Vais para que departamento? – perguntou a que me tinha chamado.
– Jornalista – disse.
– Óptimo – disse uma de cabelos loiros encaracolados – vais ser a minha colega do lado. Eu sou a Carlota – e deu-me um encontrão, sorrindo – já alguma vez ouviste alguma coisa sobre a STYLE? – perguntou.
– Ouvi? Como assim – perguntei.
– Rumores de como é o trabalho aqui – disse uma delas.
– Não… – disse, a medo.
– Avisamos-te já para não seres apanhada desprevenida: esta empresa é uma merda e aquele cabrão é um louco filho da puta.
– Shiuuuuu – disse uma delas – mais baixo, foda-se – e olharam todas para cima. Agora percebi que deviam estar a ver se o Dr. Satanás não estava à janela a ouvir a conversa. Quão arrepiante seria se ele, de facto, lá estivesse? Ri-me porque ele pareceu-me mais um pavão que se acha um pintas do que um louco
– Trabalhamos pela noite dentro todos os meses, ele disse-te? – continuou a minha futura colega do lado – mesmo até de manhã, fazemos directas. O gajo nunca está cá, só chega ao fim do dia e depois fica a pedir-nos coisas à hora de saída, como se não tivéssemos mais vida nem estivéssemos estado as últimas oito horas ali a trabalhar enquanto ele dorme ou cheira coca ou vai às putas, sabe-se lá. Tens de te impor logo cedo e dizer que não, se não vais ficar sempre cá até à meia noite todos os dias.
– Oh… ok – respondi. Não sabia o que dizer.
– Mas depois habituas-te e o ambiente é divertido.
– Porque o satanás nunca cá está – disse uma à gargalhada. Todas se riram.
– Vemo-nos dia 1 – disse a minha futura colega de lado.
– Bem-vinda à STYLE.
Bem-vinda ao emprego que toda a gente sonha em ter. Bem-vinda ao mundo das revistas femininas. Bem-vinda ao mundo da moda, da beleza e do dinheiro. Aqui vais ser feliz.
Provavelmente não. Mas vamos ver…
26 mil Horas Sem Matar o Patrão é uma crónica life-fiction que retrata o dia-a-dia numa revista. Toda e qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. Todas as segundas-feiras irá sair um novo capítulo.
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